Madiba

Former President of South Africa, Nelson Mandela, receives an ovation from Labour Party delegates. Copyright Terence Bunch.

Eu sei que possivelmente, ao acordar daqui a algumas horas, a notícia da morte iminente de Nelson Mandela será fato, e não previsão. Não importa a data. Importa que quando o mundo perde Madiba – e com o nome com o qual é chamado carinhosamente pelo povo de seu país (e poucas são as pessoas que merecem tanto carinho, então porque não oferecê-lo quando podemos?), que ele será tratado nesse pequeno texto – o mundo perde, literalmente.

Pequeno e pobre, pois pouco sei sobre sua história. Conheço os fatos que todo mundo conhece: como e porque foi preso, como foram seus dias de cárcere, e como voltou ao mundo em 1990, tornando-se presidente 4 anos depois.  Mas isso também não é importante, dado que sua figura é tão (justamente) celebrada que sua história está escrita e descrita em livros, filmes e especiais de TV às dezenas. Servirá de eterna referência, e certamente tantos outros registros surgirão.

O que importa é que o homem fez em vida. Importa ter sido capaz de após quase 30 anos, sair às ruas e não enxergar diferenças de cor, de credo, de valores. Ter pensado uma nação naquilo que o termo significa em sua forma mais pura e perfeita. Trazido um espírito autêntico de unificação, após a forma mais desumana já estabelecida de “convívio” de um povo – o maldito apartheid. Ter dado a cara a tapa (e levado muitos, por anos e anos), sem perder a pureza de um sorriso inspirador, cativante e emocionante, de quem viveu a vida por um bem maior, e por esse bem não deixou de vivê-la em momento algum, fosse qual fosse o tamanho de seu universo, e estando ele de portas fechadas ou abertas.

Não se ouviu falar mal de Madiba. Os que falaram foram esquecidos, ou ofuscados por seu sorriso em preto e branco, e sua história colorida como linda bandeira sul-africana. Hoje a tal nação aguarda resignada a notícia de sua morte, unida e dolorida. A nação mais desenvolvida do continente mais esquecido. Por tanto tempo, a África do Sul foi sinônimo da imagem desse senhor: uma imagem de esperança, de possibilidade de mudanças. O país precisa de mais. O continente também. O mundo, sempre.

Espero que a gente, nessa ânsia de viver a 200 por hora, seja capaz de em algum momento se inspirar num exemplo desse tamanho. Uma pessoa que foi aprisionada, e viveu 300 anos em 30. Que enxergou dentro de si a resposta daquilo que precisamos do lado de fora. Mais que isso: que soube sorrir, apesar de tanta dor, o sorriso mais sincero: aquele que vai direto pro peito, e faz com que a gente reaja com a emoção que nos negamos, ao apressar nossa própria existência pelos motivos mais estúpidos.

Por isso, mais do que um nome que se tornará (ainda mais) eterno, o exemplo de vida de uma pessoa que é capaz de alcançar os horizontes que Madiba alcançou, inspirando aos quatro cantos com sua história aquilo que um ser humano é capaz de fazer de melhor nessa vida, acho que todos nós – que não conhecemos, ou que conhecemos muito, ou ainda que somente ouvimos falar por aí – devemos prestar atenção ao legado desse homem. Aprendermos com o que ele foi capaz de ensinar, após por tanto tempo precisar aprender sozinho, e evoluindo em silêncio uma mente brilhante e um coração que bateu em tantas cores. No símbolo de um ser tão grandioso, que se vai sem que nos importe qual era sua religião, sua vida particular, e os tantos abusos que sofreu durante sua reclusão, estabelecendo assim a imagem de alguém que mesmo tão maltratado, foi capaz de alçar uma nação inteira rumo a um futuro mais próspero e humano, fica uma triste certeza:

– Um mundo sem Mandela é um mundo pior. Que seja, portanto, eterno Madiba.

Quando eu for presidente do mundo…

Episódio 1 – ROUPAS

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…e precisar comprar uma roupa nova, vai existir uma loja onde eu encontre camisetas de algodão, nas cores branca, preta, vermelha, amarela, verde, azul e afins (os afins não incluem rosa danoninho). Sem estampa, dois tipos de gola: redonda ou em V. Sem bolso, sem aplique, sem frases desconexas em inglês, sem etiqueta do lado de fora, sem caveira estampada.

Nela eu também vou encontrar um jeans, em que entrem minhas pernas e que não me faça parecer cagado, ou uma bailarina gorda. Vai cair bem, sem apertar mais que minha cueca, e ter umas três ou quatro lavagens, todas decentes. Nada de rasgado no joelho, tachinha na lateral ou tag na bunda, pois a intenção é usá-la todo dia, e não somente durante as festas do mês de junho. Tem que caber celular, carteira e chave no bolso. Cores de gente, e nada de branco.

Se precisar de uma bermuda, misture as definições de camiseta e jeans, e tá tudo certo. Um cinto? Preto. Fivela que encaixe, sem inspirações no The Big Bang Theory (fivela não é colete à prova de bala, nem escudo do Capitão América). Liso mesmo, do material que for. De pano inclusive. Meias, cuecas, tênis… seguem todos a mesma filosofia. Tudo junto, num só lugar. E justamente por oferecer tão e somente o básico, sem firulas, será um lugar acessível ao bolso.

Porque moda vai e vem. Mas algumas coisas são eternas.

*Inspirado num papo que tive com a Dé por diversas vezes. Deve virar uma série, que trate de como o mundo podia ser muito mais simples e fácil, mas a gente insiste em complicar absolutamente tudo.

Respire fundo, e Benalet

Nas duas vezes que estivemos em Buenos Aires, pegamos táxi por algumas vezes. Em ambas as viagens, além da abordagem clássica (são brasileiros? o que vieram fazer por aqui? estão gostando?, e toda aquela milonga deliciosa de sempre), os motoristas falaram sobre política. Na primeira viagem, em 2008, sobre o governo Lula; e no início desse ano, sobre a “Lulita” (o apelido da Dilma pros hermanos). Conversamos dentro daquilo que sabíamos, e nessas horas ficou claro que sabíamos muito pouco – principalmente comparando nosso conhecimento à fluidez dos argentinos no assunto.

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Esse povo de cabelos engraçados, futebol vistoso e ótimas carnes e doce de leite já vai pra rua faz muito tempo. Tem dois heróis nacionais declarados: Evita Perón (dispensa maiores apresentações), e Domingo Sarmiento. Ambos presidentes, o segundo – e menos conhecido por aqui – se destacou pelos incentivos à educação e cultura no país. Não por coincidência, desde seu governo houve uma proliferação de livrarias pelo país. Os argentinos continuam apaixonados por futebol, mas passam seu tempo livre em áreas públicas enormes, cultivando os bons hábitos do convívio em sociedade, leituras, esportes e um lazer de qualidade. Não por acaso, conversar com a maioria dos argentinos é uma experiência que acaba com qualquer preconceito babaca ou rixa estúpida surgida com a tal rivalidade futebolística.

Houve um estalo, e com a coragem de alguém, tudo começou a mudar. Lá atrás.

Os atos públicos que estão acontecendo por aqui têm despertado opiniões das mais diversas. Eu, que tanto falei sobre por aqui na semana passada, resolvi botar o pé pra fora de casa e segunda-feira tentamos entender a coisa toda de dentro. E vimos de tudo, mesmo. Desde então o que se discute é se estamos ou não “banalizando um movimento autêntico”, ou se isso tudo não é “fogo de palha”. Ficou mais fácil formar uma opinião depois de participar, essa é uma certeza que tenho.

E acho que o fato de domingo à noite discutirmos, em uma mesa de sete pessoas, a tal política vista aos olhos de cada um (e olhos tão diferentes que não foram poucas as surpresas com as opiniões de cada um) tornou-se assunto: superficial, viciado, bandeirista, não importa. Discutimos. Assim como o facebook, que vem sendo dominado pelo assunto desde semana passada, sem pausas pra Copa das Confederações ou pro Dia Nacional da Garrafa Térmica. Estamos discutindo, cada um do seu jeito: sem buscar fontes, passando adiante informações toscas (às vezes levianas), vídeos descontextualizados, pedidos de justiça vazia. É um verdadeiro tiroteio sem alvo. Os poucos realmente politizados e com conhecimento desmerecem as “tentativas vazias” da maioria. E você pode pensar: que merda isso… como a gente está longe de saber o que quer, e mais ainda: como lutar por isso?

E aí eu discordo.

Conversando com uma amiga hoje, a conclusão que eu tiro é que, mais importante do que sabermos onde chegar, é termos saído da inércia. Uma molecada com energia, e que ainda não tinha visto seu próprio país na rua, viu e gostou. Muitos dos céticos (incluo-me) tiveram uma fagulha de esperança em tudo o que vem acontecendo. E quanto às discussões… eu nunca vi uma criança sair do engatinhar e começar a andar sem tropeçar, cair e se machucar. Mas é um caminho sem volta – após a primeira tentativa, você faz a segunda, a terceira, e quando menos percebe está andando sozinho. Se todo esse furor se transformar em hábito, a gente pode se orgulhar sim de ter dado um primeiro passo.

Política não pode ser tabu, ou papo de velho, ou coisa de radical, e a gente precisa ser fluente e trocar opiniões, SIM: com quem entende, com quem não entende nada, com quem tem opinião formada e com quem está mais perdido que calcinha em lua-de-mel. É um processo que demanda tempo, empenho e acima de tudo, boa vontade e auto-crítica. E saber que além de protestar contra as injustiças, a gente precisa dar o segundo passo/o exemplo. Mais que isso: parar de culpar os partidos, os políticos que estão lá e toda essa corja. A culpa é nossa, que além de discutir, não sabe votar, acompanhar e cobrar os nomes que elegemos. Então, vamos aproveitar o momento pra entender tudo isso. Sim, a panela explodiu, tá uma puta zona na cozinha e a gente nem sabe por onde começar a limpar.

Mas decidir é preciso, porque à noite a gente tem que jantar.

A verdadeira Voz do Brasil

Eu nasci em 1980. Lembro de ter visto o movimento pelas Diretas muito por alto… tinha 5 ou 6 anos, as crianças da época se preocupavam muito mais em jogar bola na rua, coisa que era possível na época. E apesar da despreocupação típica, eu lembro de manifestações, do Doutor dizendo que não sairia do país se a emenda passasse, do minuto do presidente, da Voz do Brasil, e mais pra frente da morte do Tancredo. O povo que ira pra rua naquela época era uns 20, 25 anos mais velho que eu, e vira muita coisa pior num país ditatorial e repressor. Dali em diante vieram os anos Sarney, o Collor, o impeachment, o Plano Real e o Brasil “emergente”. O resto é história conhecida.

Crescer sem bandeira foi crescer assistindo ao Jornal Nacional e lendo Estadão e Veja. Parece absurda tamanha restrição, mas sim, a TV um dia já teve apenas sete emissoras, e jornais e revistas eram fontes reais de informação. Não sei quão diferentes de hoje, mas tenho absoluta certeza que vivi textos mais sérios e um jornalismo menos fantasioso desses mesmos meios. Óbvio que o mundo não era melhor, nem mais puro ou inocente. O mundo é o mundo desde sempre, e os males que a gente vive apenas mudam o jeito que se apresentam. Caráter é coisa que alguns têm, outros não, e poder é poder: pra general, presidente eleito, vice biônico, operário ou intelectual. E admito minha total alienação a tudo isso, classe média estabelecida, uma vez que passei a ganhar meu primeiro dinheiro num país em que a moeda se estabilizava depois de tantos zeros cortados, e o poder aquisitivo vinha numa crescente que gerava um otimismo consumista que anestesiava qualquer inconformismo com a situação do cara que pedia no semáforo. Era só fechar o vidro, e o problema acabava.

Claro que me tornei cético e frustrado na mesma proporção, vivendo essa realidade ridícula. Cresci ouvindo o discurso que a gente só conhece a verdade depois de ver os dois lados da moeda, mas os tais meios de informação já citados (e depois engrossados pelos grandes portais desses mesmos grupos) traziam a informação devidamente preparada, polida, mastigada e com a conclusão pronta, para que não tivéssemos o mínimo trabalho de pensar a respeito. O lado da moeda já vinha escolhido. E entre a novela das oito, o jogo do Timão e o Domingão do Faustão, aceitamos a opinião formada como sendo nossa. Lembro de gente que esperava até o domingo pra opinar sobre os assuntos do momento, pois tinha que ler a revista e o jornal pra “saber a verdade”.

O problema é que essa burrice virou hábito.

E dali em diante, ficamos esperando as coisas caírem no colo, enquanto assistíamos às novelas em que o mundo fala português, o Brasil é branco, hétero e rico, as pessoas não falam palavrão nem acordam de mau humor, os manifestantes gritam e são prontamente ouvidos, os políticos presos no último capítulo e substituídos pelo Tony Ramos, ninguém lava a louça ou a roupa, o Rio de Janeiro continua lindo e todo mundo tem tempo pra um café da manhã de mesa cheia. Isso por três vezes ao dia, incluindo sábados. Porque domingo tem futebol.

Daí, muito me surpreende essa molecada ir pra rua, com um saco bem mais novo e menos enrugado do que o meu, mas igualmente cheio, com voz alta, celular na mão, que filma e fotografa com muito mais intensidade e rapidez do que qualquer registro que eu pudesse fazer na minha época, e meus pais na deles. Em alguns minutos, tudo escancarado por todos os cantos, pois o país de hoje é uma democracia e a censura – que ainda existe SIM, e nos choca com a frequência cada vez maior que se mostra – é impelida por ondas e ondas de fatos reais, sem atores, repórteres engravatados e âncoras de telejornal. Está muito, muito fácil MESMO se informar sobre os lados da moeda agora. E não são apenas dois, mas muitos, pra quem quiser ver e tiver o mínimo de decência de refletir por dois segundos sobre tanto barulho, antes de sair reclamando por aí sobre “os baderneiros”.

Por isso meu amigo, pare com essa história de jogar a culpa nos outros. Mais do que isso: SEU UMBIGO NÃO É A RAZÃO DE SER DE UMA SOCIEDADE, DA QUAL VOCÊ FAZ PARTE, E NÃO O CONTRÁRIO. Espero que as bandeiras que eu não levantei sejam uma a uma honradas por quem chegou depois, e além de ficar reclamando e de saco cheio, resolveu fazer alguma coisa a respeito. A verdadeira Voz do Brasil – irônica e acertadamente, todos os dias, às 18h.

E amanhã tem mais. Graças – não a Deus, mas – a essas mesmas pessoas. Que bom.

*E a quem mantém a postura de que os protestos têm “cunho político”, um conselho: é fácil pra quem está no poder atribuir a culpa a quem não está, e vice-versa: nesses moldes, qualquer manifestação popular é desqualificada, e tudo vira plataforma pra próxima eleição – seja pra quem ataca, seja pra quem defende. Sejam mais inteligentes, e cogitem a possibilidade de mais uma vez estarem manipulando suas ideias.

Onde nos leva tanto barulho?

– É a melhor forma conhecida até então de fazer com que os comandantes sejam aquilo que de fato são, uma vez que são essas as pessoas que são obrigadas a tomar providências, dar declarações públicas e resolver conflitos – sem jingles de campanha, tempo na televisão e apoio publicitário;

– Da mesma forma, é nessa hora que a gente vê pra onde anda o direcionamento ideológico das pessoas. E não sejamos ingênuos: TODAS têm um, por mais simplista e alheio que seja. É um momento excelente pra gente avaliar em que sociedade estamos vivendo, onde estamos nos informando e de que forma, se nossa educação nos permite aprender com quem está além (e ensinar ou ajudar quem está aquém), e vale também para uma avaliação sobre o que de fato queremos (e como conseguir) pro nosso presente e futuro. Além disso, não existe momento melhor para observarmos se estamos sendo suficientemente responsáveis e competentes confiando nossa vida a certos responsáveis por viabilizá-la;

– Enxergar e estudar uma situação nos faz ampliar os pontos de vista. Os protestos de momento são apenas um de tantos pontos que podemos encaixar em nossa realidade. E dane-se se esse ou aquele aspecto não se encaixa em seu estilo de vida – é hora de pararmos de analisar a sociedade partindo do nosso próprio umbigo, e virmos no todo a unidade à qual pertencemos;

– Da mesma forma, de uma vez por todas descartar o partidarismo, e parar de discutí-lo como se fosse futebol. Está provado, comprovado e reprovado que a classe política da atualidade (e de tantas décadas) tem um único interesse, comum e incorruptível: o poder. E ele é enfraquecido no momento em que a democracia faz-se presente de forma literal (quando voltamos ao primeiro item dessa lista);

Aos que acham que os fatos dessa última semana não darão em nada, vale lembrar: não é uma questão de valor de tarifa, mas sim de valor social. A cidadania começa quando sabidamente exercida. Que essa fagulha se transforme numa fogueira, e que esse assunto não caia no esquecimento pela repetição. A discussão não pode se resumir a um problema, dado que nossa vida não é uma equação simples – ela se desdobra, e dia-a-dia os desafios se multiplicam. Que se multipliquem também nossas vozes e ações. Somente discutindo, refletindo e agindo, dá pra acreditar numa mudança pra todos.

Que pegue fogo mesmo

*Foram tantos os textos complementares, notícias e outros pontos de vista que resolvi rechear de links o que vem a seguir – vale a pena não ficar só por aqui, se o fim das contas é enriquecer nossa visão e embasar ainda mais nosso modo de ver as coisas. Acessem, discutam, enfim… façam sua parte.

E a galera foi pra rua.

Os mais exaltados dizem que não é dessa forma, fazendo bagunça, quebrando coisas e atrapalhando a vida alheia. Concordo em parte, quebra-quebra não é argumento, assim como os peitos do Femen também não são. Porém a bagunça e o caos são sim necessários. Analisar o caos pelo protesto é uma visão simplista de algo muito maior, que a gente vive todos os dias, de forma condicionada e acomodada.

Ou te parece normal ter que se deslocar 20, 30 km pra trabalhar em 3 ou 4 avenidas numa cidade com mais de 20 milhões de pessoas? E esse deslocamento acontecer pelos mesmos caminhos esburacados, mal planejados e ultrapassados de sempre, passando um por cima do outro? Ou por corredores de ônibus que começam do lado direito, passam pro esquerdo, voltam pro direito e terminam em lugar nenhum? Os que podem pegar um metrô não conseguem entrar no vagão, dado que a malha férrea não cobre um terço da área que deveria, e a polarização de fluxo acaba com qualquer humor logo cedo? Se você ainda quer tentar os meios alternativos, que tal a bicicleta, sendo esmagado por todo o tipo de veículo, dado que o seu está longe de ser contemplado de fato no meio dessa desordem toda? Talvez andando então… mas até mesmo as calçadas são precárias, desniveladas, às vezes inexistentes de tão estreitas, e aparentemente de uso exclusivo dos que possuem mobilidade perfeita – já que cadeiras de rodas, muletas e afins são bem-vindas somente nas tais 3 ou 4 avenidas – pra chegar lá, meu amigo, é contigo. E sempre lembrando que as mesmas calçadas em São Paulo são habitadas pelos lemmings tecnológicos, que preferem responder ao WhatsApp a olhar pra frente, e trombam mesmo, tendo você 7 ou 70 anos. Se você reclamar, pode ser surrado. Se for gay, será.

Aí trabalhamos nossas 10, 12, 15 horas diárias, torcendo pela manutenção da CLT e seu modelo ultrapassado, e aguardando ansiosamente o 13º salário (dado que os primeiros 5 de todos os anos são exclusivamente pra cobrir nossa taxa tributária padrão – portanto, trabalhamos 11 meses, em carga horária não-remunearada – ou você é daqueles sortudos que recebe hora-extra? – equivalente a 18, pelo salário de 8 e achamos que isso é o melhor dos resultados pra quem pagou mais ou menos 60 ou 70 mil Reais por uma faculdade, após os pais deixarem a vida bancando um colégio particular – dado que o ensino público é uma merda, e pra entrar numa universidade federal tem que ser obstinado e torcer pros caras não entrarem – justamente – em greve vez ou outra). Tendo um salário razoável (minoria), você economiza a alma pra comprar um iPhone (pelo dobro do preço que custa lá fora), um carro (cinco vezes o valor de fabricação), e quem sabe dar entrada num apartamento de 40m² que custa mais de 200 mil Reais. Aí vem casamento, filhos e o ciclo permanece o mesmo.

E por dois parágrafos, você se livrou do caos, certo? Afinal, esse é o curso natural das nossas vidas, e tá tudo certo. Sem bagunça, sem desordem, sem pneu queimando no meio da rua.

Mas espere um pouco: e a Copa? Vamos receber bem os turistas, eles abrem portas, certo? Claro que abrem… e você, tem dinheiro pra adentrá-las e aproveitar os dividendos, ou vai ficar desejando fazer parte da festa aqui, do lado de fora? Afinal, desde os ingressos das partidas às viagens que você nunca fará, está tudo aí, ao alcance das mãos – de quem pode ter. As portas abertas e o capital que eles trazem serão revertidos para o país? Claro que serão, assim como são hoje os custos modestos dos estádios: R$ 1,5bi em Brasília (para futuramente serem aproveitados em jogos da terceira divisão), R$ 550mi em Manaus (que nem futebol tem), e R$ 1bi no Maracanã, que já estava pronto e funcionando. E já que estamos falando em SP, que tal o Itaquerão, com seus R$ 850mi? Claro que trará benefícios para a Zona Leste, mas o Morumbi já estava de pé, o Palestra em reformas com dinheiro privado, e o Pacaembú agora, na iminência do desuso, pode ser repassado à iniciativa privada – justamente o fator que proibiu o Corinthians de adquirí-lo. Quanta organização.

E nem estamos falando dos aeroportos que não foram reformados, dos trens que não saíram do papel, do replanejamento urbano que dará lugar a pontos facultativos e escolta às delegações por vias diversas. O legado da Copa será um universo de improvisos, a custo de reformas caríssimas. Por sinal, conversando com o frentista do posto em que abasteço o carro hoje pela manhã, ele expôs um ponto ao qual eu não havia me atentado: possivelmente algumas reformas acontecerão, sim. Em cima da hora, sem licitações e com fluxo direto de dinheiro público pros bolsos dessa gente podre que governa e comanda o país e o esporte. Isso veio, repito, da boca do frentista. Sim, é só pensar um pouco que a gente escancara as verdades. Vale a última linha desse parágrafo pra citar o nome do presidente da instituição que nos representa mundialmente nesse momento: José Maria Marin, um dos maiores filhos da puta da época ditatorial desse país, que está enchendo as ventas de dinheiro nessa farra toda, assessorado/manipulado por outro déspota chamado Marco Polo Del Nero, igualmente afundado na merda e imunes ambos a qualquer sanção política, e com os bolsos cada vez mais cheios.

Portanto, antes de condenar esse povo que está “na contramão atrapalhando o trânsito”, pense bem o quanto eles são necessários numa democracia que queira se tornar válida e de direito. Sim, protestar hoje é possível graças a muita gente que botou peito em arma e morreu lutando lá nos idos de 60 e 70 – quebrando vidraça, encarando a polícia, falando alto, foram essas as pessoas que permitiram que hoje eu pudesse escrever o que penso, você discordar de tudo isso, e tantos outros se manifestarem da forma que sabem – ou não. Ninguém lá na frente vai se lembrar dos incidentes isolados dos oportunistas baderneiros e vândalos que se aproveitam desse tipo de movimento pra tocar o puteiro – por sinal, são essas as pessoas que a polícia deveria identificar e prender, se fosse o caso. Foi nesse país que o povo foi pra rua (incitado pela TV, grande erro histórico, uma vez que desde 90 as pessaos vêm esperando um novo chamado – e ele não virá), pintou a cara e tirou um presidente do comando. Deputados, vereadores, senadores, governadores e prefeitos também são políticos, fazem coisas iguais ou piores que o rapaz de gel no cabelo, e estão aí, se mantendo há décadas sem um santo capaz de tirá-los do poder. Deixe de ser egoísta e achar que essas pessoas estão TE prejudicando. A definição de democracia é isso: o poder que emana do povo é a voz de quem não é representado por ninguém, e resolve abrir a boca.

Invalidar uma revolta autêntica contra um de tantos abusos que sofremos todos os dias é baixar a cabeça e continuar levando essa vidinha de merda, pagando imposto sem cobrar resultado, votando em palhaço e big brother pra cargo público, e bradando aos quatro cantos que esse país não tem jeito. Isso tudo dentro de uma SUV, chamando o zé povinho de burro, assistindo ao Jornal Nacional e renovando anualmente a assinatura da Veja. Tanta gente lutando por causa tortas e do jeito errado (marcha das vadias, passeata pela maconha, pedalada sem roupa,  tratar parada gay como se aquilo fosse um puta carnaval, e não uma reivindicação de respeito nesse mundo de intolerância que a gente vive) – sim, é hora de validar a voz com argumento, inteligência e inconformismo. As manifestações vazias PRECISAM dar lugar a discussões e ataques à raiz dos problemas reais do país, e não em suas consequências.

Pra tudo tem jeito nessa vida, meu amigo – menos pra morte. E quem diria (eu, no meu ceticismo, ainda quero ver no que isso tudo vai dar), até o Brasil “tem jeito, pelo jeito”.

Mudar de verdade é mudar a verdade

Nossas memórias são compostas de um conjunto bem impreciso de momentos marcantes. Grande parte de cada dia é quase automaticamente esquecida, restando apenas alguns segundos a serem recordados mais pra frente: palpitação, dor, decepção, euforia, resultado. Essas coisas são a memória consistente, e dessa coleção de fatos vem a tal essência na qual a gente se define. Quem ou o quê causa isso tudo? Qualquer coisa que emocione a gente – pro bem ou pro mal.

Tudo isso pra chegar aqui e recomendar algumas visitas.

Assisti The Help na tarde desse domingo. Sim, você já assistiu trocentos filmes que tratam sobre racismo por aí – e nem por isso o assunto é menos revoltante. Deixemos de lado o fato do filme ser excelente, tecnicamente falando. Não sei se existem exemplos suficientes no mundo que nos deixem menos abismados com a capacidade do ser humano em se mostrar rasteiro, cruel e egoísta. Num momento em que tantos valores são levantados e discutidos (justamente) por aí, talvez uma olhada para um passado não tão distante quanto parece nos mostre piores do que a gente mesmo consegue se imaginar. E sim, existe o outro lado – longe de mim entregar o enredo de um filme a quem ainda não o tenha visto. Mas ele é exceção, e não de hoje.

E eu me pego pensando: no que de fato realmente evoluímos? No que algumas situações se transformaram de fato? As conquistas igualitárias foram enormes no decorrer dos tempos, e outras acontecem nesse exato momento… mas estamos assimilando isso tudo da maneira correta, ou velamos nossos preconceitos numa falsa moral que é necessária para o convívio pacífico com aqueles que em algum momento olhamos de lado? Há mais de século deveríamos estar nos reeducando de berço, com sinceridade e cara limpa, mas continuamos um discurso torto disfarçado às vezes de humor, às vezes de religão, quando não de outras desculpas esfarrapadas, perdurando nossa ignorância de geração em geração. Minamos os bons exemplos, e exercemos dia-a-dia nossa função de separar joio e trigo, sendo que ambos nascem da mesma terra e crescem sob o mesmo Sol.

Dito isso, assisti também George Harrison: Living in the Material World.

Eu nunca fui de me apegar a biografias, com raras exceções (casos de Johnny Cash e Ray Charles). George Harrison seria sem dúvida mais um caso, dada a idolatria atribuída ao rapaz por este que vos escreve. Mas o documentário de Scorsese foi além, e trouxe ao longo de seus 208 minutos uma profundidade rara, coisa que somente um beatle como George e outra meia dúzia de nomes seria capaz de gerar. Muito além da música, o foco (principalmente na segunda parte do documentário) é sobre o ser humano e sua busca pela espiritualidade – tantas vezes transparecida em sua obra. A coisa vai além, e o que vemos é a história de um personagem (vale chamá-lo dessa forma?) de beleza ímpar; um ser humano que elevou sua própria existência a níveis que nem suas companhias mais próximas foram capazes de definir ou descrever, mesmo sob tantas óticas diferentes. A unanimidade, porém, foi alcançada no legado que ele deixou. E novamente: não estamos falando de música.

Juntamos os pontos.

Poderia-se atribuir tal evolução de Harrison às aberturas que a fama e o dinheiro lhe proporcionaram. Não seria um erro: não é todo mundo que pode “se dar” um retiro espiritual na Índia, dividir um período da vida com um guru e seu grupo, ou mesmo ter acesso às drogas e alucinógenos de forma irrestrita. É um modo de se enxergar a coisa… mas me parece uma análise rasa, até simplista pra quem acompanha os relatos do filme. Mais do que isso: que é capaz de sentir o carinho e a grandeza do ser humano nas letras e melodias compostas por George durante sua passagem por aqui. A reflexão – mesmo que breve – tomando-se por base esses aspectos, já distancia qualquer preconceito da vontade, esforço e capacidade que ele teve de evoluir enquanto ser humano. Evolução que é cobrada ali, algumas linhas acima. A compreensão de nossa insignificância enquanto unidade, ao mesmo tempo em que funcionamos como agentes determinantes e exercemos impacto direto na vida de quem nos cerca.

Acho que a grande vitória de qualquer pessoa é partir dessa vida deixando uma saudade gostosa em quem fica, e memórias que resultem em sorrisos sinceros e espontâneos, mesmo que acompanhados de lágrimas. Pouco importa o que você teve, com o que se parecia, de que cor era sua pele e a textura da boca que você beijava. Vale sim quem você foi, essencialmente: sua presença fez diferença? Quem eram essas pessoas que você colecionou durante sua passagem? Elas valiam a pena, a ponto de suas opiniões fazerem tanta diferença em cada decisão que você tomava? Pra quem, afinal de contas, você existiu?

Olhar pra trás nos ensina muita coisa, mas ensinar não é somente comover. É transformar, sincera e espontaneamente. Não faz sentido levar adiante aquilo que nos destrói. Não adianta ter vergonha e insistir no erro – e vergonha é um sentimento dos mais espontâneos e difíceis de se disfarçar. Com séculos e séculos de erros sacramentados, dizer que “é hora” de mudar alguma coisa é uma heresia com o conceito de tempo. Insistimos em ir contra nossa própria natureza, e perpetuamos caminhos equivocados. Sempre há cura, claro que há… um mesmo erro seria insistir no pragmatismo de bater no que fere sem oferecer o remédio. E tomando como exemplos (bobos, mas exemplo é exemplo) os dois filmes, as soluções estão lá. Discutidas, pensadas e repensadas, com causas e efeitos. Porque nenhuma mudança é simples, fácil e agradável. Dói corrigir. A cabeça pesa, a vergonha surge, a humildade pede o espaço em que nosso orgulho vive e domina. A vitória não é imediata, e nem sempre uma certeza. Porém, vislumbrá-la em nossa própria capacidade de mudança é a luz necessária pra um novo caminho. Não, nada é fácil.

Mas se a vida fosse um mar de rosas, não haveriam lágrimas em nosso último ato. Que sejam pelo menos de alegria, e gratidão por alguém que fez o seu melhor.