Que pegue fogo mesmo

*Foram tantos os textos complementares, notícias e outros pontos de vista que resolvi rechear de links o que vem a seguir – vale a pena não ficar só por aqui, se o fim das contas é enriquecer nossa visão e embasar ainda mais nosso modo de ver as coisas. Acessem, discutam, enfim… façam sua parte.

E a galera foi pra rua.

Os mais exaltados dizem que não é dessa forma, fazendo bagunça, quebrando coisas e atrapalhando a vida alheia. Concordo em parte, quebra-quebra não é argumento, assim como os peitos do Femen também não são. Porém a bagunça e o caos são sim necessários. Analisar o caos pelo protesto é uma visão simplista de algo muito maior, que a gente vive todos os dias, de forma condicionada e acomodada.

Ou te parece normal ter que se deslocar 20, 30 km pra trabalhar em 3 ou 4 avenidas numa cidade com mais de 20 milhões de pessoas? E esse deslocamento acontecer pelos mesmos caminhos esburacados, mal planejados e ultrapassados de sempre, passando um por cima do outro? Ou por corredores de ônibus que começam do lado direito, passam pro esquerdo, voltam pro direito e terminam em lugar nenhum? Os que podem pegar um metrô não conseguem entrar no vagão, dado que a malha férrea não cobre um terço da área que deveria, e a polarização de fluxo acaba com qualquer humor logo cedo? Se você ainda quer tentar os meios alternativos, que tal a bicicleta, sendo esmagado por todo o tipo de veículo, dado que o seu está longe de ser contemplado de fato no meio dessa desordem toda? Talvez andando então… mas até mesmo as calçadas são precárias, desniveladas, às vezes inexistentes de tão estreitas, e aparentemente de uso exclusivo dos que possuem mobilidade perfeita – já que cadeiras de rodas, muletas e afins são bem-vindas somente nas tais 3 ou 4 avenidas – pra chegar lá, meu amigo, é contigo. E sempre lembrando que as mesmas calçadas em São Paulo são habitadas pelos lemmings tecnológicos, que preferem responder ao WhatsApp a olhar pra frente, e trombam mesmo, tendo você 7 ou 70 anos. Se você reclamar, pode ser surrado. Se for gay, será.

Aí trabalhamos nossas 10, 12, 15 horas diárias, torcendo pela manutenção da CLT e seu modelo ultrapassado, e aguardando ansiosamente o 13º salário (dado que os primeiros 5 de todos os anos são exclusivamente pra cobrir nossa taxa tributária padrão – portanto, trabalhamos 11 meses, em carga horária não-remunearada – ou você é daqueles sortudos que recebe hora-extra? – equivalente a 18, pelo salário de 8 e achamos que isso é o melhor dos resultados pra quem pagou mais ou menos 60 ou 70 mil Reais por uma faculdade, após os pais deixarem a vida bancando um colégio particular – dado que o ensino público é uma merda, e pra entrar numa universidade federal tem que ser obstinado e torcer pros caras não entrarem – justamente – em greve vez ou outra). Tendo um salário razoável (minoria), você economiza a alma pra comprar um iPhone (pelo dobro do preço que custa lá fora), um carro (cinco vezes o valor de fabricação), e quem sabe dar entrada num apartamento de 40m² que custa mais de 200 mil Reais. Aí vem casamento, filhos e o ciclo permanece o mesmo.

E por dois parágrafos, você se livrou do caos, certo? Afinal, esse é o curso natural das nossas vidas, e tá tudo certo. Sem bagunça, sem desordem, sem pneu queimando no meio da rua.

Mas espere um pouco: e a Copa? Vamos receber bem os turistas, eles abrem portas, certo? Claro que abrem… e você, tem dinheiro pra adentrá-las e aproveitar os dividendos, ou vai ficar desejando fazer parte da festa aqui, do lado de fora? Afinal, desde os ingressos das partidas às viagens que você nunca fará, está tudo aí, ao alcance das mãos – de quem pode ter. As portas abertas e o capital que eles trazem serão revertidos para o país? Claro que serão, assim como são hoje os custos modestos dos estádios: R$ 1,5bi em Brasília (para futuramente serem aproveitados em jogos da terceira divisão), R$ 550mi em Manaus (que nem futebol tem), e R$ 1bi no Maracanã, que já estava pronto e funcionando. E já que estamos falando em SP, que tal o Itaquerão, com seus R$ 850mi? Claro que trará benefícios para a Zona Leste, mas o Morumbi já estava de pé, o Palestra em reformas com dinheiro privado, e o Pacaembú agora, na iminência do desuso, pode ser repassado à iniciativa privada – justamente o fator que proibiu o Corinthians de adquirí-lo. Quanta organização.

E nem estamos falando dos aeroportos que não foram reformados, dos trens que não saíram do papel, do replanejamento urbano que dará lugar a pontos facultativos e escolta às delegações por vias diversas. O legado da Copa será um universo de improvisos, a custo de reformas caríssimas. Por sinal, conversando com o frentista do posto em que abasteço o carro hoje pela manhã, ele expôs um ponto ao qual eu não havia me atentado: possivelmente algumas reformas acontecerão, sim. Em cima da hora, sem licitações e com fluxo direto de dinheiro público pros bolsos dessa gente podre que governa e comanda o país e o esporte. Isso veio, repito, da boca do frentista. Sim, é só pensar um pouco que a gente escancara as verdades. Vale a última linha desse parágrafo pra citar o nome do presidente da instituição que nos representa mundialmente nesse momento: José Maria Marin, um dos maiores filhos da puta da época ditatorial desse país, que está enchendo as ventas de dinheiro nessa farra toda, assessorado/manipulado por outro déspota chamado Marco Polo Del Nero, igualmente afundado na merda e imunes ambos a qualquer sanção política, e com os bolsos cada vez mais cheios.

Portanto, antes de condenar esse povo que está “na contramão atrapalhando o trânsito”, pense bem o quanto eles são necessários numa democracia que queira se tornar válida e de direito. Sim, protestar hoje é possível graças a muita gente que botou peito em arma e morreu lutando lá nos idos de 60 e 70 – quebrando vidraça, encarando a polícia, falando alto, foram essas as pessoas que permitiram que hoje eu pudesse escrever o que penso, você discordar de tudo isso, e tantos outros se manifestarem da forma que sabem – ou não. Ninguém lá na frente vai se lembrar dos incidentes isolados dos oportunistas baderneiros e vândalos que se aproveitam desse tipo de movimento pra tocar o puteiro – por sinal, são essas as pessoas que a polícia deveria identificar e prender, se fosse o caso. Foi nesse país que o povo foi pra rua (incitado pela TV, grande erro histórico, uma vez que desde 90 as pessaos vêm esperando um novo chamado – e ele não virá), pintou a cara e tirou um presidente do comando. Deputados, vereadores, senadores, governadores e prefeitos também são políticos, fazem coisas iguais ou piores que o rapaz de gel no cabelo, e estão aí, se mantendo há décadas sem um santo capaz de tirá-los do poder. Deixe de ser egoísta e achar que essas pessoas estão TE prejudicando. A definição de democracia é isso: o poder que emana do povo é a voz de quem não é representado por ninguém, e resolve abrir a boca.

Invalidar uma revolta autêntica contra um de tantos abusos que sofremos todos os dias é baixar a cabeça e continuar levando essa vidinha de merda, pagando imposto sem cobrar resultado, votando em palhaço e big brother pra cargo público, e bradando aos quatro cantos que esse país não tem jeito. Isso tudo dentro de uma SUV, chamando o zé povinho de burro, assistindo ao Jornal Nacional e renovando anualmente a assinatura da Veja. Tanta gente lutando por causa tortas e do jeito errado (marcha das vadias, passeata pela maconha, pedalada sem roupa,  tratar parada gay como se aquilo fosse um puta carnaval, e não uma reivindicação de respeito nesse mundo de intolerância que a gente vive) – sim, é hora de validar a voz com argumento, inteligência e inconformismo. As manifestações vazias PRECISAM dar lugar a discussões e ataques à raiz dos problemas reais do país, e não em suas consequências.

Pra tudo tem jeito nessa vida, meu amigo – menos pra morte. E quem diria (eu, no meu ceticismo, ainda quero ver no que isso tudo vai dar), até o Brasil “tem jeito, pelo jeito”.

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