O último capítulo

Amanhã vou encarar meu primeiro processo.

Estudei por tanto tempo (e ainda estudo, óbvio) pra justamente em momento algum precisar passar por aperto. Faço o possível e o impossível pra que meus trabalhos caiam no gosto do cliente – às vezes inclusive me dobrando a alguns caprichos (a incidência desse tipo de ocorrência vem caindo drasticamente com uma maior qualificação do próprios clientes… ainda bem). Normalmente a relação de trabalho é muito boa… ganhei alguns bons amigos nesses quase 15 anos de estrada. Fechei parcerias excelentes. Colecionei bons cases, e atendi da ervilha à melancia. Óbvio que nem tudo são flores, mas no geral eu posso dizer que minha vida profissional foi pautada de muito mais sucesso do que fracasso.

Mas está escrito no pára-choques: MERDAS ACONTECEM.

Às vezes a gente erra. Nesse caso, errei eu, por ter me dobrado demais a um “cliente” que não sabia exatamente o que queria. Pegar na mão a gente pega filho, pega mãe… Existem lugares específicos pra se fazer caridade, e o mercado não é um deles. Aprendi muito desde o momento em que despachei o indivíduo, e ele me respondeu com uma intimação judicial. Por sinal, o ser humano surpreende a gente de muitas formas – mas as negativas sempre prevalecem.

Essas linhas são muito mais um desabafo. Um fardo que estou levando sozinho e em silêncio nas costas está prestes a escorregar pro esquecimento, eu espero. E são também um agradecimento pessoal a cada um que investe e aposta no meu trabalho. Disse meu advogado: “é seu primeiro, não será o último”. Eu acredito. Às vezes o ego sobressai, e a razão de algumas pessoas é ofuscada por um preciosismo bizarro, que ferra a vida de outras pessoas.

Se eu posso pedir alguma coisa, amanhã mandem uma forcinha em pensamento. Lá pro meio da tarde, essa história estúpida acaba.

Bateu a cabeça?

3x4

Há alguns dias, comecei um trabalho totalmente pessoal*, que tem causado certa estranheza nas pessoas mais chegadas. Venho publicando quase diariamente fotos históricas da minha família – inclusive de antes do meu nascimento. Acho que valem algumas linhas de explicação, mais especificamente sobre onde (e como) surgiu essa ideia.

Da publicação de uma das minhas primas, há algumas semanas, surgiram das profundezas de alguma gaveta/HD imagens da minha infância – e inéditas pra mim até então. Foi o estalo: quantas são as lembranças que os anos/décadas estão aos poucos soterrando? Debaixo de quantas memórias recentes estão ocultos fatos realmente relevantes…? Aqueles que formaram a primeira fileira de tijolos, que serviu de base para o que eu me tornei hoje? Será que algum dia eu serei capaz de contar essa história pra alguém (filhos, sobrinhos, netos)? E a Dé, que eu conheci em 2006, faz ideia de quem eu fui durante os 26 anos anteriores? Depois que meu pai morreu, é justo que eu o transforme em uma memória à base de meia dúzia de imagens estáticas, que vira e mexe revisito? A grande maioria das pessoas que eu conheço não estiveram comigo durante tanto tempo… e as que eu conheço desde pequeno, perdi contato e retomei há pouco – sabem de fato quem eu sou?

Muitas perguntas, e a resposta óbvia: as fotos que minha mãe guarda debaixo da cama.

Existe na casa dela uma caixa mitológica (que já foi uma enorme mala de couro), onde estão praticamente todos os álbuns da minha família. Imagens que desde que me conheço por gente têm cheiro de mofo. Algumas estão descoradas, outras tantas o tempo literalmente comeu as bordas. Existem ali coisas da minha infância, e dela também, e do meu pai. Está tudo ali, pronto pra ser mexido de alguma maneira. E eu resolvi sujar um pouco as mãos.

A gente lembra de tanta coisa que quis esquecer… as dores mais diversas: da briga na família à derrota do time, do pé na bunda número 12 da menina da escola ao desemprego do pai, do Natal sem presentes à mudança forçada de colégio. A gente joga tudo pra debaixo da cama, engole o choro e segue em frente. Infelizmente, os arredores – que nem sempre são ruins como determinados momentos – vão junto pra gaveta. A gente esconde contextos, e aos poucos vai apagando os rastros, pra que possamos ser apenas o hoje. Enquanto isso, o ontem e o anteontem vão ficando cada vez mais distantes, até desaparecerem completamente e a gente não conseguir reaver a ordem das coisas – e menos ainda que coisas são essas.

Aos poucos, sem ordem definida, vou tentar arrumar isso tudo no que eu puder: restaurar imagens e cores (sim, existe um certo romantismo nas fotos amareladas, mas o mundo em 1973 era tão ou mais colorido do que 40 anos depois – seria uma injustiça omitir essas cores), tentar organizar uma sequência que me faça enxergar uns cacos da minha infância (cujas memórias eu tenho sob outro ponto de vista – as fotos são obviamente a visão de meus pais), e com isso reorganizar meu passado. Não é dívida com ninguém, muito menos um momento de nostalgia. É pura curiosidade, e uma certa ânsia em reativar memórias, que depois dos 30 parecem ter sido vividas em outra existência.

Timidez, cabelo, moleton, velotrol, shorts minúsculos, uniformes de colégio, estampas de disco voador, espinhas, transformações. Saber quem a gente foi pode ser a melhor forma de avaliar aquilo que a gente é. Não é crise de meia-idade (pra essa, ainda faltam bons 7 anos), mas organizar a bagunça é cada vez mais uma necessidade na vida. Em tempos de tanta pressa, parar um pouco e olhar pra trás tem me feito muito bem. Quem sabe, esclareça pra meia dúzia dos que estão realmente por perto os porquês de muita coisa. São desejos paralelos… o legal mesmo tem sido descobrir – o que for.

A viagem tem sido deliciosa. E vai melhorar bastante. Um trabalho desses é pra mais de ano.

*Não, não é uma despedida – não estou doente, nem morrendo; não, não estamos grávidos e nos derretendo por bebês (se cada pessoa que te pergunta “quando vocês vão ter um bebê?” soubesse o quanto isso é desagradável, não se intrometeria na vida alheia tão gratuitamente), e muito menos alguma coisa aconteceu com minha mãe, irmão e afins. Fiquem tranquilos: a gente ainda tem muita lenha pra queimar – e mais ainda: muita história pra contar. E viver.