Vinte

“O Rubinho se arrebentou”.

Foi a primeira coisa que meu pai disse quando bateu à porta da casa do Kadu naquela tarde de sexta, antes de me levar pra casa (sim, era 1994 e eu vivia de caronas do meu pai). “Acho que foi feio, eu vi a imagem e o carro dele decolou”, e eu já fiquei doido pra ver o raio do acidente. Sim, já diz o Piquet que de fato a gente quer ver isso mesmo: carro pegando fogo, a coisa toda explodindo, essas coisas. Piquet sempre foi meu ídolo: ele sabe das coisas.

Veio o sábado.

Treinos classificatórios. O circuito de Ímola sempre teve ótimas corridas, um horário pra lá de acessível, a gente assistia treino e corrida do começo ao fim de olho escancarado – eu até mais que meu pai. Nessa época cada um já tinha uma TV em cada quarto: eu assistia no meu, ele no dele. E de repente aquele carro lilás com o logo da MTV (carro bonito do cão, um dos que eu mais gosto até hoje – mas o que tinha de bonito tinha de lento) aparece escorregando, já todo estourado. Close da câmera, o capacete branco do Ratzenberger cheio de sangue acima da viseira.

– Puta que pariu!

Eu nunca tinha visto morte na Formula 1. E não que não fosse da minha época, mas não transmitiam os treinos nos anos 80, quando o Elio De Angelis morreu em 86, e pra mim a competição daqueles dias era Piquet x Mansell e que se dane todo o resto. Mas tava na cara que tinha dado merda. Tiram o cara do carro, massagem cardíaca… morreu, puta que pariu.

Aquilo foi horrível. A tarde ficou ransa, porque sim, Formula 1 era um dos assuntos de casa em todo final de semana, e a gente tinha acabado de assistir a uma morte ao vivo. Não é legal… a gente gosta sim de ver a desgraceira, mas que os caras saiam de lá e façam mais e mais “o tal circo” acontecer. Um se arrebenta na sexta, um morre no sábado. “Esses caras deviam cancelar a corrida… imagina se morre um Senna da vida amanhã?” – Eu não sei quem falou, mas saiu.

E veio o domingo.

Eu no quarto, minha mãe na cozinha, meu pai no quarto dele. Começa a corrida e o JJ Lehto se arrebenta logo de cara. Bandeira amarela, bandeira verde, e em duas voltas é a vez do Senna.

– Bateu o Senna caralho!

Minha mãe corre pra ver. A cabeça mexe. Ele tá vivo. Ninguém chega. Tem sangue no chão. Sobem os panos. Fudeu, fudeu tudo. Cacete, só faltava essa, não é possível. E aumenta o som, e liga o rádio AM na Jovem Pan pra gente saber o que acontece, e passa o tempo e a tarde fica longa, tensa, inevitável – a gente ficou esperando a notícia que ninguém queria ouvir, mas a única que parecia possível.

Eu não chorei, mas fiquei mal. Aquela coisa de perder referência, um nome que você ouve desde sempre – e no meu caso, enfrentando Prost e Mansell, e brigando com o meu ídolo. O cara era bom pra cacete, mas nessa época existia essa rivalidade meio de futebol – aquelas coisas de torcer pra um e não torcer pra outro, pois os nossos eram de fato os melhores pilotos.

senna

Era época de ídolos nesse país. Longe dos santos, dos imaculados, daqueles acima do bem e do mal. Mas sim, existia uma torcida e uma mobilização real quando aquele cara levantava o raio da bandeira na então “volta da consagração”, tema da vitória, essas coisas que hoje em dia parecem tão cafonas, mas que criaram uma geração de gente que acreditava que isso aqui tinha jeito. É engraçado olhar pra trás e enxergar as coisas dessa forma agora, 20 anos depois, entre GPs insossos do Bahrein e da China. As coisas pareciam mais reais, e dá uma baita saudade daquela que sem dúvida foi a melhor de todas as épocas da Formula 1. A morte do Ayrton interrompeu bruscamente um “mau hábito” que tínhamos, de sermos os melhores – desde a década de 70, com Emerson, e depois Piquet. Aí passamos a exigir o mesmo dos que vieram (e alguns compraram a responsabilidade, numa ingenuidade absurda), sendo que eram apenas normais, bons pilotos, como são até hoje os outros brasileiros que seguiram.

Aquele 1º de maio foi devastador. Mais do que dois pilotos, matou um pouco daquilo que a gente tinha enquanto parca noção de patriotismo. É muito difícil explicar pra quem chegou depois o tamanho de uma figura como a de Senna. Só sei que já se vão 20 anos, e eu sou capaz de lembrar de minutos daquele final de semana como se tivessem acontecido ontem, e isso não é pouca coisa.

Não, saudade não é bom

PeruBolivia_0209

Minha mãe está indo morar em Joinville, sexta agora.

Do susto da notícia repentina à mudança, foram-se aproximadamente 40 dias, e eu confesso: é um tempo muito curto para uma digestão bem-feita de um acontecimento tão diretamente relacionado à minha vida. Sim, minha mãe é a única família que me restou por perto, e agora eu passo a ser o único Masili em São Paulo. Ela vai morar com meu irmão, a cunhada e a sobrinha.

Obviamente, eu não gostei. Não sou hipócrita.

Porque com ela, vai-se a espontaneidade de “tive um dia de merda, vamos tomar uma cerveja mais tarde?“, “comprei uma carne e o almoço está cheiroso, quer vir fazer um prato?“, “quer vir ver o que aconteceu com o meu computador, que ele tá esquisito?“. Minha mãe é de longe a pessoa com quem mais tive afinidade quando ainda éramos quatro. Depois da aborrecência, onde todos queremos distância dos nossos pais, foi ela quem topou em um sábado de manhã sair de casa e comprar ingresso de cambista pra assistir ao Elton John, naquele que foi o primeiro show da vida dela; foi ela que num aniversário que fiz, já meio alta com as cervejas da tarde, topou carregar uma mochila nas costas e encarar Perú e Bolívia naquela que foi a maior aventura das nossas vidas até então (sim, depois do Monte Roraima, creio que essa viagem caiu pro segundo posto até o momento, e essa a velha não aguentaria); e principalmente: ela foi a primeira e única daquela casa a conversar de igual pra igual sem medo de mudar de opinião, pedir desculpas ou dar a mão à palmatória em caso de cagadas. Eu sempre tive mãe, mas posso dizer sem a menor sombra de dúvida: nela sempre esteve minha melhor amiga.

Então sim, eu estou me sentindo bem sozinho e estranho nessa condição de pessoa que fica. A distância de 5,5 km entre nossas casas vai aumentar de uma forma absurda, a ponto de serem raros os abraços (por mais que ela diga que não – eu tenho minhas convicções, e espero estar errado sobre elas, mas enquanto não mudo de opinião são essas as minhas palavras). É uma merda. É uma absoluta merda mole de vaca isso. Algumas pessoas dizem que saudade é bom. Não é. Bom é estar perto de quem a gente ama, poder cismar ter um dia bom, e tê-lo. Eu acho ótimo que minha sobrinha possa aproveitar a avó daqui em diante, mas estou abrindo um pequeno espaço e me dando o direito de ser egoísta por alguns segundos – eu não sei sorrir amarelo, me perdoem.

E com ela, vai também a Pimpolhinha – a cachorrinha que há algumas semanas ilustrou constantemente meu facebook (enquanto a véia estava por lá, pesquisando apartamento). Quem tem ou já teve cachorro sabe o quanto eles se tornam família, e o quanto a gente se apega. Eu já tive dois, mas era criança demais quando tivemos que doá-los. Na época, dividi o sentimento de perda com a empolgação da mudança – de Santo Amaro pro Taboão. Dessa vez não há divisões, e é outra merda, gigantesca.

Eu não vim aqui recomendar nada, muito menos dizer nada além dessas linhas. Aquilo que preciso dizer pra Paquinha já é dito pessoalmente, como sempre foi. Eu torço pra que tudo dê certo, pra que ela encontre mais felicidade ainda na própria vida, e que aprenda a cuidar de si, por si – coisa que ela faz, mas não tão bem assim. De resto, quis deixar umas linhas… talvez de desabafo, porque é muito complicado lidar com uma situação tão determinante e grande na minha própria vida no mais absoluto silêncio. Mas é o que eu devo fazer, e é o que eu tenho de momento.

Ainda tenho três dias com você (espero). Que por favor, a gente aproveite.

No mais, você nunca será visita, véia. Sua casa permanece de portas e braços abertos. Eu duvido que você volte a viver nela, mas as visitas são obrigatórias, necessárias e determinantes pra que os que ficam permaneçam felizes – mesmo que absoluta e profundamente saudosos. E é melhor eu parar de escrever porque tá foda.

Eu amo muito você. Se cuida.

A caneca

Por um acaso do destino (e o destino tem umas tiradas completamente ridículas), a tua caneca veio parar aqui em casa. Aquela, de um restaurante que nunca fui, eternamente congelada e raramente usada que habitava a geladeira da nossa casa lá em Santo Amaro, depois a do Taboão, e agora tá aqui, na Vila Sônia (quem merece chamar esse lugar de Jardim Monte Kemel, afinal de contas?).

Obviamente o acaso quis que isso acontecesse a dois dias do seu aniversário. Pra mim, um dos objetos mitológicos, que eu jamais imaginei em outras mãos – as minhas inclusive – mesmo que você não fizesse uso da dita. No que se diz respeito a goles e bebidas, eu me lembro daqueles copos de cristal, que tinham um trabalho semelhante a pequenas folhas, que davam a graça ao teu whiskey quando vez ou outra este saía da adega. Por sinal, criei meu próprio ritual com os copinhos que ganhei da Mel – dois da viagem que fizemos em quatro pro Perú e pra Bolívia, e mais três da incursão européia da moça (que você não conheceu, mas adoraria – temos alguns bons novos amigos aqui). É um ritual sem gelo, com garrafas melhores que as tuas – não queria me gabar, uma delas ganhei de dois amigos da Dé, uma da própria Mel, e a primeira que inaugurou esse apartamento veio do Japa… só podia – e coitado, me forneceu o combustível auxiliar pra assistir ao primeiro título da Libertadores do meu time sem saber. Como a Dé não bebe o danado, eu faço as vezes direitinho.

Logicamente não se toma whiskey naquela caneca, a não ser que o irresponsável por tal ato queira se esborrachar no chão ao levantar da cadeira. Mas eu pensei em estreá-la hoje, com meu presente de Natal (também dado pela Mel… pessoas etílicas dão presentes etílicos a amigos etílicos). Ou talvez reestreá-la, uma vez que ela é e sempre será tua. Uma daquelas cervejas chiques, rolha no lugar de tampa, essas coisas que hoje em dia nego sai por aí ostentando, mas que nas poucas vezes que me arrisco tento fazer valer o momento. Acho apropriado.

Voltei pra casa depois do show do Hugh Laurie nesse domingo, após levar minha mãe de volta (a véia estava radiante… pulou, cantou e dançou de um jeito que você deveria ter se permitido ver por tantas vezes) e de lá trazer a tal caneca. Engraçado isso… voltei com a caneca, uns queijinhos, um pote de mel e um monitor-monstro que herdei da velha. Sim, estou ficando velho… preciso de telas maiores e óculos quase o tempo todo, por mais que eu ainda renegue tal necessidade. E além disso tudo, peguei a tal caneca. Botei tudo no banco do passageiro e vim pra casa tomando todo o cuidado do mundo – como se carregasse cristal. Porém, o cuidado e os dedos em nada tinham a ver com o monitor ou as comidas. O raio da caneca não podia quebrar, e não quebrou.

Fiquei tentando lembrar quais outras coisas te trariam aqui pra dentro de alguma forma. Não lembrei de nada. Aquela marreta horrorosa que você carregava no carro, a caixa de ferramentas caótica e que pesava mais do que zoação de sãopaulino, os vários vinis do Ray Conniff… nada disso me encantou, nunca. Pensando bem, você nunca foi um cara de grandes ostentações: um puta relógio, um óculos assim/assado, discos e livros raros, essas coisas que a gente vivia exibindo por aí antes da chegada do iPhone, quando “ter” passou a “significar” definitivamente.

Mas a tal caneca… era quase imaculada, e de repente, aqui está ela.

canecadocarlao

Então, se o acaso quis assim, eu prometo com todo o cuidado do mundo sujá-la de modo a honrar todo o imaginário que existiu na minha cabeça quando a vi pela primeira vez entre os potes de sorvete (ou de feijão, nunca saberemos). Espero que aí onde você está existam coisas condizentes pra se comemorar uma data como essa. Prefiro abril a agosto, a data sempre é mais gostosa, mesmo que pouco ou raramente comemorada como se deve – por sinal, queria saber de onde tirei o gosto pela bagunça, numa família em que pouco ou quase nada se comemora… tremenda besteira essa: todo motivo é motivo pra gente abraçar quem ama, encontrar quem não vê, lembrar de quem faz falta.

Eu não esqueço. E agora, a cada vez que eu abrir o MEU congelador, procurando sorvete (e encontrando feijão), poderei dar um sorriso de canto de boca. De certa forma, posso estender a mão e alcançar você, mesmo que seja pra um breve e estúpido gole gelado. É uma lembrança boa. Acho que é a lembrança que você merece.

Te amo velhão. Feliz aniversário.