A caneca

Por um acaso do destino (e o destino tem umas tiradas completamente ridículas), a tua caneca veio parar aqui em casa. Aquela, de um restaurante que nunca fui, eternamente congelada e raramente usada que habitava a geladeira da nossa casa lá em Santo Amaro, depois a do Taboão, e agora tá aqui, na Vila Sônia (quem merece chamar esse lugar de Jardim Monte Kemel, afinal de contas?).

Obviamente o acaso quis que isso acontecesse a dois dias do seu aniversário. Pra mim, um dos objetos mitológicos, que eu jamais imaginei em outras mãos – as minhas inclusive – mesmo que você não fizesse uso da dita. No que se diz respeito a goles e bebidas, eu me lembro daqueles copos de cristal, que tinham um trabalho semelhante a pequenas folhas, que davam a graça ao teu whiskey quando vez ou outra este saía da adega. Por sinal, criei meu próprio ritual com os copinhos que ganhei da Mel – dois da viagem que fizemos em quatro pro Perú e pra Bolívia, e mais três da incursão européia da moça (que você não conheceu, mas adoraria – temos alguns bons novos amigos aqui). É um ritual sem gelo, com garrafas melhores que as tuas – não queria me gabar, uma delas ganhei de dois amigos da Dé, uma da própria Mel, e a primeira que inaugurou esse apartamento veio do Japa… só podia – e coitado, me forneceu o combustível auxiliar pra assistir ao primeiro título da Libertadores do meu time sem saber. Como a Dé não bebe o danado, eu faço as vezes direitinho.

Logicamente não se toma whiskey naquela caneca, a não ser que o irresponsável por tal ato queira se esborrachar no chão ao levantar da cadeira. Mas eu pensei em estreá-la hoje, com meu presente de Natal (também dado pela Mel… pessoas etílicas dão presentes etílicos a amigos etílicos). Ou talvez reestreá-la, uma vez que ela é e sempre será tua. Uma daquelas cervejas chiques, rolha no lugar de tampa, essas coisas que hoje em dia nego sai por aí ostentando, mas que nas poucas vezes que me arrisco tento fazer valer o momento. Acho apropriado.

Voltei pra casa depois do show do Hugh Laurie nesse domingo, após levar minha mãe de volta (a véia estava radiante… pulou, cantou e dançou de um jeito que você deveria ter se permitido ver por tantas vezes) e de lá trazer a tal caneca. Engraçado isso… voltei com a caneca, uns queijinhos, um pote de mel e um monitor-monstro que herdei da velha. Sim, estou ficando velho… preciso de telas maiores e óculos quase o tempo todo, por mais que eu ainda renegue tal necessidade. E além disso tudo, peguei a tal caneca. Botei tudo no banco do passageiro e vim pra casa tomando todo o cuidado do mundo – como se carregasse cristal. Porém, o cuidado e os dedos em nada tinham a ver com o monitor ou as comidas. O raio da caneca não podia quebrar, e não quebrou.

Fiquei tentando lembrar quais outras coisas te trariam aqui pra dentro de alguma forma. Não lembrei de nada. Aquela marreta horrorosa que você carregava no carro, a caixa de ferramentas caótica e que pesava mais do que zoação de sãopaulino, os vários vinis do Ray Conniff… nada disso me encantou, nunca. Pensando bem, você nunca foi um cara de grandes ostentações: um puta relógio, um óculos assim/assado, discos e livros raros, essas coisas que a gente vivia exibindo por aí antes da chegada do iPhone, quando “ter” passou a “significar” definitivamente.

Mas a tal caneca… era quase imaculada, e de repente, aqui está ela.

canecadocarlao

Então, se o acaso quis assim, eu prometo com todo o cuidado do mundo sujá-la de modo a honrar todo o imaginário que existiu na minha cabeça quando a vi pela primeira vez entre os potes de sorvete (ou de feijão, nunca saberemos). Espero que aí onde você está existam coisas condizentes pra se comemorar uma data como essa. Prefiro abril a agosto, a data sempre é mais gostosa, mesmo que pouco ou raramente comemorada como se deve – por sinal, queria saber de onde tirei o gosto pela bagunça, numa família em que pouco ou quase nada se comemora… tremenda besteira essa: todo motivo é motivo pra gente abraçar quem ama, encontrar quem não vê, lembrar de quem faz falta.

Eu não esqueço. E agora, a cada vez que eu abrir o MEU congelador, procurando sorvete (e encontrando feijão), poderei dar um sorriso de canto de boca. De certa forma, posso estender a mão e alcançar você, mesmo que seja pra um breve e estúpido gole gelado. É uma lembrança boa. Acho que é a lembrança que você merece.

Te amo velhão. Feliz aniversário.

Uma ideia sobre “A caneca

  1. Possuo coleção, copos, taças e uma caneca do kakuk, presenteadas pelos srs Antônio, Crisistomo e José ao meu pai frequentador assíduo do chopp brahma servido nesta caneca.

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