Um dia você chega LÁ.

A gente deseja e sonha isso. Pra gente mesmo, pra quem a gente ama, pra quem merece. Na maioria das vezes, LÁ é um lugar – senão impossível – dificílimo. Desanima, esquece que sonhou um dia com esse destino, e no fim das contas se acomoda na mesmice. Não dá pra condenar, esse é o caminho que a gente acaba tomando mesmo, porque no final das contas, a rotina – cinza e bege – engole esses sonhos todos, e nem mastiga. Quando não a rotina, o contexto. O mundo. As pessoas. O que for. A vida.

Pois bem. Durante essa última semana, eu cheguei LÁ.

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Pra muita gente, LÁ tem muito dinheiro, iates e mulheres. Acho que LÁ é um lugar tão grande que cada um que chega vê uma coisa diferente. No meu caso, estavam LÁ minha família, meus amigos e algumas várias surpresas. Todos me ajudando, se divertindo, e de alguma forma dividindo essa breve estadia comigo. LÁ é um lugar muito quente, em que eu só cheguei depois de suar muito. Durante a viagem, as noites são curtas, os dias são longos. E obviamente, há obstáculos: aqueles que acham que seu trabalho não vale o que você cobra, aqueles que acham que você não devia cobrar nada, “afinal você está se divertindo”, e uma ou outra lombada que te causa um galo aqui, um hematoma ali. Mas a estrada é longa, e se a gente quer chegar LÁ, pensar que o caminho é de rosas é uma visão muito simplista pra algo tão difícil de se alcançar. Os obstáculos fazem parte, e superá-los é uma obrigação.

Minha parte de LÁ não teve tanto dinheiro. Nem iates. As mulheres foram as que sempre estiveram por aqui: a que me trouxe, a que quis pra si, as que estão sempre por perto. Mas havia muito mais que isso. Chegaram novos amigos. Chegou o time do Corinthians. Chegaram muitas e muitas pessoas me perguntando o que era tudo aquilo. Que era legal. Que eu merecia. Que devia fazer mais. Imprimir. Escrever. Juntar tudo e fazer mais. Disseram que aquilo tudo de fato era pra estar LÁ: os livros, os desenhos, os projetos, os encontros e reencontros, os autógrafos, os comentários empolgados, os palavrões eufóricos, os beijos da criançada, os abraços que não terminam, as lágrimas que deveriam ficar guardadas, pois era hora de sorrir até dar cãibra. E deu. E eu continuei sorrindo.

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LÁ existe sim. E é legal demais, porque você vê que os sonhos têm propósito. Que existem outras trocentas cores nos mais diversos lugares, muito mais bonitas e vivas do que bege e cinza. Quando a gente se aproxima de LÁ, lembra de cada conselho, puxão de orelha, empurrão providencial. Lembra de gente “que foi chata pro teu bem”, “que te disse que ia dar nisso se você não não desistisse”, “que sempre soube que você conseguiria”. O suor vai virando tesão. Você sabe que não errou o caminho. Mais do que isso: você sabe que LÁ não é um lugar só, pois quando se chega, esse lugar muda de nome. Ganha o teu. E você entende muito daquilo que a vida te reserva.

Se dá algum descanso. Dorme sorrindo, sem cãibras. Tem certeza de que a viagem valeu a pena. Mas que LÁ é um lugar pro qual você quer sempre voltar, e ter uma experiência diferente a cada oportunidade. E não há calor, insônia ou lombada que seja capaz de te impedir.

É muito, muito legal isso. E eu desejo, a cada um que não desiste de si mesmo, que chegue LÁ.

*Foi, profissionalmente, a semana mais feliz da minha vida – disparado. E eu queria ser justo e agradecer a cada um nominalmente, mas seria injusto, pois abençoado que sou, foram muitos os responsáveis diretos e indiretos por dois dos meus sonhos – um que sempre tive, e um que nunca ousei – hoje serem memórias. Então, estou tentando de uma forma muito pessoal e discreta agradecer a todos. Obrigado mesmo galera, de coração.

Gera gentileza

1) O bar convidativo e gostoso, de meio de bairro, sem invasão de flanelinhas, vendedores de sândalo e paninhos de prato é perfeito. Mesas na calçada, você esquece da hora, do check-in no foursquare, da paranoia do estacionamento – afinal, ali está o meio-fio, sem a famigerada zona azul, sem estacionamentos privados que cobram mais caro que cerveja importada. E depois de algumas horas, pouco antes de ir embora, ao pagar a conta no balcão, o dono do estabelecimento (que você já conhece pelo nome, e qual a novidade? chama-se Zé) te oferece uns pedaços de chocolate que estavam depositados naquele enorme pote plástico ao lado. De graça. “Pra ajudar a voltar pro prumo sem ressaca, sabe?”

2) Você pede a pizza, sempre pela internet, vez ou outra por telefone. Ela sempre chega bonita, pesada, gostosa. Às vezes atrasa um pouco, mas quem não atrasa nessa cidade? Não é motivo pra ligar pagando geral e mandando praquele lugar quem por azar atender o telefone. E eis que um dia você resolve variar um pouco, e ao digitar o pedido resolve que dessa vez a cebola fica (por mim, ela sempre ficaria, mas o paladar aqui de casa não é só meu). E ao enviar o pedido, os caras da pizzaria te ligam em seguida, “pra ver se é isso mesmo ou se você não errou, já que a gente tá acostumado aos pedidos de vocês e a pizza sempre é sem cebola“.

3) Fim de tarde, a gente resolve descer a rua e encontra numa viela aqui perto um restaurante de um senhor simpático, de bigode vistoso. Encostamos o carro (na rua, sempre na rua), atravessamos e somos recebidos com um abraço de boas-vindas. “Digam onde vocês querem sentar que eu monto a mesa pra vocês“, ele diz ainda (e sempre) sorrindo. Na indecisão da Dé, ele emenda “algo no meu coração diz que se você sentar ali, vai gostar mais“. Contra coração a gente não argumenta: obedece. E é feliz, obviamente. Ele volta a conversar com o pessoal da mesa da calçada, e a gente é atendido por outro rapaz, garçom do lugar, que explica cada coisa do cardápio “fofinho“. Desistimos de pedir. “Traga o que você quiser“, e o rapaz não decepciona. No meio disso, enquanto a gente aguardava a segunda rodada de pratos, o senhor sorridente encosta na mesa, com um pratinho de dois kibes, me entrega e completa com “eram os últimos, acabaram de sair e te trouxe só por causa da sua camisa (do Corinthians, óbvio), porque ela me emociona só de olhar“. Fomos mimados, entupidos de uma comida absurdamente saborosa “e fofa“, e quando achávamos que nada mais cabia, veio a sobremesa. E não sobrou nada. “Vocês vão ter que voltar, porque ficamos devendo o café“. A gente volta, claro que volta. Na saída, minha mãe chama o bigodudo: “Posso dar um abraço no senhor?” – “Eu que ia pedir o seu abraço!“, e a gente fecha a noite dessa forma, quase emocionado.

E antes que você me diga qualquer coisa sobre “técnicas de venda“, “eles precisam servir bem pra sobreviver e continuar no mercado” e outros argumentos céticos, eu já deixo respondido: sim, é possível – mas tem algo a mais aí. E esse algo a mais aparentemente é a sinceridade, e o gosto em fazer as coisas de um jeito bem-feito. Coincidentemente, são 3 exemplos culinários/etílicos, mas existem outros vários aqui no bairro: o santista dono da adega que empresta garrafa de vidro e nunca mais pede de volta, o mecânico que arruma teu carro e te pede pra dar uma volta sem exigir que você deixe pagamento, identidade ou qualquer outra garantia, a dona do mercadinho que num dia mais calmo te pára durante o pacote pra contar que cursou desenho industrial, mas que agora estava pensando em fazer gastronomia, “porque ter um diploma na parede deve ser uma sensação muito realizadora“, o açougueiro que sempre faz a mesma piada depois de falar do Coringão, ou ainda o porteiro que no sol ou na chuva sai da cabine pra bater três minutos de papo contigo sobre qualquer coisa: pergunta se o joelho tá melhor, que o calor não cessa, que tá tudo tranquilo com ele e essas coisas.

E depois dessas pessoas, é muito difícil você continuar irritado, ou tenso, ou desiludido. É muito fácil você dar passagem, sorrir no semáforo, agradecer ou desejar um bom dia. Isso contamina, mas a gente às vezes se sente bobo por estar feliz em meio à sisudez do mundo. Uma culpa burra, desnecessária, e que faz com que os bons momentos sejam tão especiais que pareçam irreais. Não são. Essa é a real força transformadora, a coisa que a gente busca pro mundo, os reais instrumentos pra uma vida melhor. A gente cruza com eles, todos os dias, em exemplos triviais grande parte do tempo, e tão únicos às vezes que a gente nunca mais esquece. É estar consciente deles. Cultivá-los. Não negar o que nos trazem, e não se sentir idiota em passá-los adiante. Mesmo que não afetem a todos, nem sempre (porque sim, sempre existirá os que preferem o mau-humor, o smartphone, a reclamação constante, o “não fez nada mais que a obrigação“), não importa.

É fazendo o nosso que a gente vira coisa especial pros outros. E é bom demais saber que você é o motivo da alegria de alguém – seja esse alguém quem for.

P.S.: E não, não é um post patrocinado. Eu indico porque eu amo, e é um puta de um argumento válido (e suficiente) esse:

1) Bar Dona Ilda
Rua Guanás, 337

2) La Spezia Pizzaria
Rua Doutor Sílvio Dante Bertacchi, 485
(11) 3501-9719

3) Sainte Marie Gastronomia
Rua Dom João Batista da Costa, 70
(11) 3501-7552

Dois de agosto

Bigode,

Antes de qualquer coisa, deixa eu te dizer: teu time tá uma M-E-R-D-A! É uma grande moleza torcer pra essa bosta né? Ahahahahahahahahah! Sim, com certeza seria nosso primeiro assunto na manhã de hoje: eu, tentando te empurrar esse vexame que vocês tão passando lá no estrangeiro (grandes merdas tricampeão do mundo que não vence há 14 jogos), enquanto você retrucaria com alguma estupidez mal-educada, desmerecendo meu Timão. A gente faria cara de bosta um pro outro após uns 3 minutos de baixaria, e depois que as fúrias esfriassem, a gente desvirtuaria pra algum outro assunto qualquer em que quebrar o pau não fosse necessário.

Será que seria isso mesmo, bicho…? Já se vão 4 anos (sim, quatro-anos) desde esse teu silêncio, que só acaba quando por algum motivo você vem atormentar meus sonhos. Sim, nem neles você me dá folga – e algumas vezes até ali o couro come, e eu acabo acordando meio puto por ter desperdiçado mais um momento que poderia ter sido bom contigo. Tanta coisa aconteceu e mudou nesse tempo, e tanta coisa tem mudado cada vez mais rapidamente por aqui que se fosse te contar tudo por carta, seriam umas várias páginas a serem escritas. Só nesse último ano, eu e a Dé saímos do país por duas vezes, peguei uns clientes nervosos, tô sendo processado por uma idiota, fui tio de novo, e seu time taí, caindo pelas tabelas (você deve estar muito puto com isso que eu sei – chupa), fora os fatores externos absurdos, como o povo partindo pra rua, reivindicando seus direitos e começando a entender que cidadania é uma coisa que a gente não aprende nem na escola, muito menos lendo a Veja (isso, acredite, no Brasil!) – e esse é o resumão grosso, dentre tantas outras coisas que a gente não é capaz de lembrar a essa hora da madrugada.

A última novidade, você já deve ter notado, foi a saída daqui (e a chegada por aí) da tua irmã. Eu nem tinha mais contato com a família – quase toda ela, raras exceções, virou recordação – e somente isso – na minha vida desde a época em que você ainda estava por aqui. Mas imagino que com mais gente aí no andar de cima, você tenha mais ouvidos pra azucrinar, e mais sorrisos pra arrancar com sua palhacice aguda desenfreada.

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Aqui em casa, tudo anda. Nosso canto está se ajeitando aos poucos (nesses últimos dias, resolvi botar a mão na massa e acabar com as últimas caixas que ainda restavam da mudança: temos enfim um escritório bonito, gostoso e receptivo), eu e a cozinha somos cada vez mais amigos, e nesse último mês a Dé e eu enfim compramos um smartphone cada – porque o tempo pede por adaptações, e essa eu nem imagino como você estaria encarando, com cada vez mais coisa dentro de telas cada vez menores. O mundo anda meio louco, pra falar a verdade. Tá difícil acompanhar tanta coisa, os focos se multiplicam e a galera não se aprofunda nem vai até o fim nas coisas que acreditava ontem. É complicado, mas nunca tive a ilusão que seria moleza. Queria saber como você estaria encarando isso tudo.

Por isso bigode, eu espero que você esteja bem. Quatro anos na minha cabeça contam como uma Copa (eu e meu futebol sem fim), e é estranho pensar que um período que normalmente demora a passar tenha se arrastado tanto na saudade que eu sinto de você. A vida é capaz de acelerar aquilo que não importa, ou que é bom demais, mas nos massacrar esticando cada segundo ao máximo quando a gente sente falta de alguém. Tenho aprendido isso nesse tempo todo, de formas muito distintas e diferentes. Notado quem e o quê me faz falta, e onde e pra quem preciso ser todo dia um cara melhor. Dizem que a gente se acostuma com a falta… é verdade, mas dói. Não deixa de doer nunca. Só dói diferente com o tempo.

Acho que dão pro gasto esses novos fios brancos na minha barba – o cabelo eu nem considero há tanto tempo! – e espero não estar te deixando muito nervoso aí no teu canto. Sei que a gente se despediu estando bem, ambos, e é essa mesma paz a que eu desejo nessa tua jornada. Eu continuo aqui, esperando suas novas aparições nos meus sonhos, e com a certeza de que um dia eu te trombo de novo.

Se Deus quiser, com o São Paulo na segundona.

Beijo velho. Te amo muito, mesmo desse jeito torto.

Celo.

Madiba

Former President of South Africa, Nelson Mandela, receives an ovation from Labour Party delegates. Copyright Terence Bunch.

Eu sei que possivelmente, ao acordar daqui a algumas horas, a notícia da morte iminente de Nelson Mandela será fato, e não previsão. Não importa a data. Importa que quando o mundo perde Madiba – e com o nome com o qual é chamado carinhosamente pelo povo de seu país (e poucas são as pessoas que merecem tanto carinho, então porque não oferecê-lo quando podemos?), que ele será tratado nesse pequeno texto – o mundo perde, literalmente.

Pequeno e pobre, pois pouco sei sobre sua história. Conheço os fatos que todo mundo conhece: como e porque foi preso, como foram seus dias de cárcere, e como voltou ao mundo em 1990, tornando-se presidente 4 anos depois.  Mas isso também não é importante, dado que sua figura é tão (justamente) celebrada que sua história está escrita e descrita em livros, filmes e especiais de TV às dezenas. Servirá de eterna referência, e certamente tantos outros registros surgirão.

O que importa é que o homem fez em vida. Importa ter sido capaz de após quase 30 anos, sair às ruas e não enxergar diferenças de cor, de credo, de valores. Ter pensado uma nação naquilo que o termo significa em sua forma mais pura e perfeita. Trazido um espírito autêntico de unificação, após a forma mais desumana já estabelecida de “convívio” de um povo – o maldito apartheid. Ter dado a cara a tapa (e levado muitos, por anos e anos), sem perder a pureza de um sorriso inspirador, cativante e emocionante, de quem viveu a vida por um bem maior, e por esse bem não deixou de vivê-la em momento algum, fosse qual fosse o tamanho de seu universo, e estando ele de portas fechadas ou abertas.

Não se ouviu falar mal de Madiba. Os que falaram foram esquecidos, ou ofuscados por seu sorriso em preto e branco, e sua história colorida como linda bandeira sul-africana. Hoje a tal nação aguarda resignada a notícia de sua morte, unida e dolorida. A nação mais desenvolvida do continente mais esquecido. Por tanto tempo, a África do Sul foi sinônimo da imagem desse senhor: uma imagem de esperança, de possibilidade de mudanças. O país precisa de mais. O continente também. O mundo, sempre.

Espero que a gente, nessa ânsia de viver a 200 por hora, seja capaz de em algum momento se inspirar num exemplo desse tamanho. Uma pessoa que foi aprisionada, e viveu 300 anos em 30. Que enxergou dentro de si a resposta daquilo que precisamos do lado de fora. Mais que isso: que soube sorrir, apesar de tanta dor, o sorriso mais sincero: aquele que vai direto pro peito, e faz com que a gente reaja com a emoção que nos negamos, ao apressar nossa própria existência pelos motivos mais estúpidos.

Por isso, mais do que um nome que se tornará (ainda mais) eterno, o exemplo de vida de uma pessoa que é capaz de alcançar os horizontes que Madiba alcançou, inspirando aos quatro cantos com sua história aquilo que um ser humano é capaz de fazer de melhor nessa vida, acho que todos nós – que não conhecemos, ou que conhecemos muito, ou ainda que somente ouvimos falar por aí – devemos prestar atenção ao legado desse homem. Aprendermos com o que ele foi capaz de ensinar, após por tanto tempo precisar aprender sozinho, e evoluindo em silêncio uma mente brilhante e um coração que bateu em tantas cores. No símbolo de um ser tão grandioso, que se vai sem que nos importe qual era sua religião, sua vida particular, e os tantos abusos que sofreu durante sua reclusão, estabelecendo assim a imagem de alguém que mesmo tão maltratado, foi capaz de alçar uma nação inteira rumo a um futuro mais próspero e humano, fica uma triste certeza:

– Um mundo sem Mandela é um mundo pior. Que seja, portanto, eterno Madiba.

Mudar de verdade é mudar a verdade

Nossas memórias são compostas de um conjunto bem impreciso de momentos marcantes. Grande parte de cada dia é quase automaticamente esquecida, restando apenas alguns segundos a serem recordados mais pra frente: palpitação, dor, decepção, euforia, resultado. Essas coisas são a memória consistente, e dessa coleção de fatos vem a tal essência na qual a gente se define. Quem ou o quê causa isso tudo? Qualquer coisa que emocione a gente – pro bem ou pro mal.

Tudo isso pra chegar aqui e recomendar algumas visitas.

Assisti The Help na tarde desse domingo. Sim, você já assistiu trocentos filmes que tratam sobre racismo por aí – e nem por isso o assunto é menos revoltante. Deixemos de lado o fato do filme ser excelente, tecnicamente falando. Não sei se existem exemplos suficientes no mundo que nos deixem menos abismados com a capacidade do ser humano em se mostrar rasteiro, cruel e egoísta. Num momento em que tantos valores são levantados e discutidos (justamente) por aí, talvez uma olhada para um passado não tão distante quanto parece nos mostre piores do que a gente mesmo consegue se imaginar. E sim, existe o outro lado – longe de mim entregar o enredo de um filme a quem ainda não o tenha visto. Mas ele é exceção, e não de hoje.

E eu me pego pensando: no que de fato realmente evoluímos? No que algumas situações se transformaram de fato? As conquistas igualitárias foram enormes no decorrer dos tempos, e outras acontecem nesse exato momento… mas estamos assimilando isso tudo da maneira correta, ou velamos nossos preconceitos numa falsa moral que é necessária para o convívio pacífico com aqueles que em algum momento olhamos de lado? Há mais de século deveríamos estar nos reeducando de berço, com sinceridade e cara limpa, mas continuamos um discurso torto disfarçado às vezes de humor, às vezes de religão, quando não de outras desculpas esfarrapadas, perdurando nossa ignorância de geração em geração. Minamos os bons exemplos, e exercemos dia-a-dia nossa função de separar joio e trigo, sendo que ambos nascem da mesma terra e crescem sob o mesmo Sol.

Dito isso, assisti também George Harrison: Living in the Material World.

Eu nunca fui de me apegar a biografias, com raras exceções (casos de Johnny Cash e Ray Charles). George Harrison seria sem dúvida mais um caso, dada a idolatria atribuída ao rapaz por este que vos escreve. Mas o documentário de Scorsese foi além, e trouxe ao longo de seus 208 minutos uma profundidade rara, coisa que somente um beatle como George e outra meia dúzia de nomes seria capaz de gerar. Muito além da música, o foco (principalmente na segunda parte do documentário) é sobre o ser humano e sua busca pela espiritualidade – tantas vezes transparecida em sua obra. A coisa vai além, e o que vemos é a história de um personagem (vale chamá-lo dessa forma?) de beleza ímpar; um ser humano que elevou sua própria existência a níveis que nem suas companhias mais próximas foram capazes de definir ou descrever, mesmo sob tantas óticas diferentes. A unanimidade, porém, foi alcançada no legado que ele deixou. E novamente: não estamos falando de música.

Juntamos os pontos.

Poderia-se atribuir tal evolução de Harrison às aberturas que a fama e o dinheiro lhe proporcionaram. Não seria um erro: não é todo mundo que pode “se dar” um retiro espiritual na Índia, dividir um período da vida com um guru e seu grupo, ou mesmo ter acesso às drogas e alucinógenos de forma irrestrita. É um modo de se enxergar a coisa… mas me parece uma análise rasa, até simplista pra quem acompanha os relatos do filme. Mais do que isso: que é capaz de sentir o carinho e a grandeza do ser humano nas letras e melodias compostas por George durante sua passagem por aqui. A reflexão – mesmo que breve – tomando-se por base esses aspectos, já distancia qualquer preconceito da vontade, esforço e capacidade que ele teve de evoluir enquanto ser humano. Evolução que é cobrada ali, algumas linhas acima. A compreensão de nossa insignificância enquanto unidade, ao mesmo tempo em que funcionamos como agentes determinantes e exercemos impacto direto na vida de quem nos cerca.

Acho que a grande vitória de qualquer pessoa é partir dessa vida deixando uma saudade gostosa em quem fica, e memórias que resultem em sorrisos sinceros e espontâneos, mesmo que acompanhados de lágrimas. Pouco importa o que você teve, com o que se parecia, de que cor era sua pele e a textura da boca que você beijava. Vale sim quem você foi, essencialmente: sua presença fez diferença? Quem eram essas pessoas que você colecionou durante sua passagem? Elas valiam a pena, a ponto de suas opiniões fazerem tanta diferença em cada decisão que você tomava? Pra quem, afinal de contas, você existiu?

Olhar pra trás nos ensina muita coisa, mas ensinar não é somente comover. É transformar, sincera e espontaneamente. Não faz sentido levar adiante aquilo que nos destrói. Não adianta ter vergonha e insistir no erro – e vergonha é um sentimento dos mais espontâneos e difíceis de se disfarçar. Com séculos e séculos de erros sacramentados, dizer que “é hora” de mudar alguma coisa é uma heresia com o conceito de tempo. Insistimos em ir contra nossa própria natureza, e perpetuamos caminhos equivocados. Sempre há cura, claro que há… um mesmo erro seria insistir no pragmatismo de bater no que fere sem oferecer o remédio. E tomando como exemplos (bobos, mas exemplo é exemplo) os dois filmes, as soluções estão lá. Discutidas, pensadas e repensadas, com causas e efeitos. Porque nenhuma mudança é simples, fácil e agradável. Dói corrigir. A cabeça pesa, a vergonha surge, a humildade pede o espaço em que nosso orgulho vive e domina. A vitória não é imediata, e nem sempre uma certeza. Porém, vislumbrá-la em nossa própria capacidade de mudança é a luz necessária pra um novo caminho. Não, nada é fácil.

Mas se a vida fosse um mar de rosas, não haveriam lágrimas em nosso último ato. Que sejam pelo menos de alegria, e gratidão por alguém que fez o seu melhor.

Sabão de coco?

A gente sonha um dia em poder ter um espaço só nosso, onde se possa fazer as coisas do seu jeito: estender uma rede, pintar uma parede colorida, encher a geladeira de cerveja e comer porcaria, chamar os amigos pra virar a noite falando besteira, encontrar um aconchego que se sinta saudade quando distante. Tem gente que gosta de janela grande, de varanda gourmet, de cama king size, de sala grande, de cozinha americana, de ar condicionado. E tem gente que não faz questão de nada disso, desde que a porta feche, a privada não vaze e a geladeira funcione.

Eu sonhava em ter um lugar pra acordar de domingo, e aproveitar a preguiça. Como já morei em sobrado enorme e apartamento minúsculo, não fechei uma ideia mental desse “ambiente perfeito”. Um teto, e depois o que vier: pufe, sofá, tapete. Uma TV. Casei com uma menina que dormia no chão, e que por muitas noites dividiu um micro com um monitor de 17″, que rodava DVD. Servia quase como um sonífero eletrônico, tal a força que a gente fazia pra ler legenda naquela coisa minúscula. Funcionava pro que fosse, e a gente teve noites e noites de pura felicidade nesse cenário de dois elementos.

Depois de construirmos o que temos hoje (sim, constrói-se quando a gente tem metas e trabalha pra isso – danem-se se as paredes já estiverem de pé: transformar uma casa em um lar é responsabilidade de quem vive debaixo desse teto), hoje pela manhã desmontei após mais de 3 anos a última caixa de nossa mudança. Senti orgulho, muito orgulho de termos nesses 60m² o nosso canto. A parede vermelha, a rede estendida, o quebra-cabeças jogado no meio da sala sem que ninguém te encha o saco por estar lá. Sei muito bem o quanto minha pequena quis um dia poder ter tudo isso pra si – ela também é feita de gostos simples. Eu, tenho aqui meu escritório, minhas fotos penduradas, uma cozinha em que não preciso torcer a coluna entre esquentar a água e picar uma cebola. Me basta.

A pintura da parede do corredor está rachada. O teto do banheiro precisa de um bom trato. Nem mexemos no quarto, que ainda é meio de quem saiu – muito mais do que de quem entrou. Faltam coisas, claro que faltam, sempre faltarão, mas a gente tem nossas prioridades. NOSSAS prioridades, que não dizem respeito a absolutamente ninguém. A Dé precisa matar um dragão por dia, sendo que esses dragões são cada vez maiores, e ela volta pra casa detonada, física e mentalmente. Eu preciso caçar os meus dragões, que ultimamente têm sido mortos com muito sangue, exatamente como se deve ser. Tudo o que a gente quer é, a partir das 18h30, derramar o corpo na sala e curtir um pouco nosso casamento: conversando sobre o dia (e sim, ela fala- e como fala, e ri, e esbraveja, e xinga, e depois ri de novo), assistindo série, comendo uma pizza, jogando um videogame, ficando de preguiça.

Claro que 90% do que acontece aqui em casa não diz respeito a ninguém. A NINGUÉM. Ambos temos dias ruins, mas a diferença é que a gente se entende. Se suporta. Se levanta. Já sabe ler onde acontecem os problemas, e os resolve na mesma hora, pra que não se tornem uma bola de neve que arrebente nossa cabeça lá na frente. Temos feito isso há mais de 5 anos, quase 6. É natural, a gente nem se preocupa com a besteiragem que cobram da gente por aí. Já chorei muito no ombro dela, esbravejei, me perdi e me encontrei – e vice-versa.

Filhos? Mudanças? Adaptações? Obrigado, mas SÓ A GENTE sabe o que quer. E se quer. Talvez o nosso “problema” seja esse: a falta de dependência dos outros. Ficou meio ridículo ter que sair por aí justificando o porquê de passagens aéreas ao invés de exames pré-natal… como se alguém tivesse alguma coisa a ver com as nossas coisas. Não me lembro de sair por aí perguntando o porquê fulano trocou de carro, sicrano pagou R$ 2000,00 num celular, atualizou o iPad cujo modelo antigo não completou nem um ano. Não me diz respeito, por mais que eu não entenda, e acho que quem escolhe A, B ou C pra vida não está a fim de ficar por aí justificando suas decisões. Mas convenhamos: viver a vida do outro é uma baba, se compararmos a dificuldade que é viver a nossa.

Portanto, o fechamento desse texto poderia ser um desabafo, mas prefiro substituir o “estado nervoso” por dois exemplos de reflexão que fizeram parte da minha vida:

1) um, dado pelo meu pai e relatado por minha mãe depois de muito tempo, quando de uma certa intervenção da minha avó quanto à alguma coisa que eu fiz – meu pai virou-se pra ela e disse: “Dona Lina, dentro da minha casa quem cuida do meu filho sou eu, e a senhora não tem nada a ver com isso”. Sim, a casa é de quem compra e nela vive, e as coisas que acontecem (ou não) dentro dela, idem. Se você costuma limpar as mãos na toalha da sua mesa, pense se é educado fazer o mesmo na toalha alheia;

2) e outro conselho que tive há pouco tempo, vindo de uma crítica do meu irmão, e posteriormente (sim, me mostraram duas vezes o mesmo problema – o que já é suficiente pra ligar o bom-senso e fazer uma autocrítica) de um apontamento da Dé, que me disse: “Aprenda a dormir com os problemas, antes de sair por aí reagindo que nem um louco e falando merda pros outros”. Deu resultado, porque é importante ouvir o que a gente é, principalmente quando a avaliação sai da boca de quem a gente fere. E pensar a respeito, se aquilo for uma recorrência. Se eu ainda tivesse meus cabelos, alguns teriam sido poupados se eu aprendesse isso antes.

O orgulho da manhã foi ofuscado pelo absurdo da noite. Mas não tem erro: problema, a gente resolve. Mas resolve pra valer, e de uma vez por todas. Nosso caminho nunca foi fácil, e mesmo quando parece ter se tornado menos espinhoso, inventam mais um obstáculo logo à frente, como se já não tivéssemos sofrido o suficiente até hoje, nem problemas do dia-a-dia pra resolver…

Felizmente a gente não precisa levantar a voz pra se fazer ouvir. Argumento resolve.

Amem direito

Uma das coisas mais importantes pelas quais passei em minha vida foi coincidentemente o possível pior momento profissional dos meus pais – mais especificamente, do meu pai – numa época em que ele era o único a trabalhar em casa (éramos crianças, ele estupidamente transformou minha mãe de profissional dedicada a dona de casa, e ela estupidamente aceitou essa condição: mea culpa para ambos, numa época em que isso era condição normal). Acabou o lazer, acabou o impulso consumista, e por muito pouco não acabou a comida. Natal, aniversário, datas do comércio… foi tudo pro espaço, e a gente TEVE que entender e se adaptar a isso. Mudamos de escola particular pro Senai (e se não passássemos no concurso, era colegial em escola pública ou parar de estudar), o carro apodreceu e veio o transporte público, e o casarão em Santo Amaro deu lugar a um apartamento possivelmente 7 ou 8 vezes menor.

Nossa infância “foi encerrada” em certo momento, com tudo isso acontecendo.

Mas não faltou carinho. Nunca faltou diálogo, muito menos olho no olho. A gente (eu e meu irmão) sabia o que estava acontecendo, e o porquê de tantas mudanças. Era o início dos anos 90, o plano Collor, o dinheiro que ainda não valia nada, uma inflação descontrolada, o mercado em frangalhos. Independente de tudo isso, nossa vida continuava, e dentro de casa éramos o que sempre fomos. Crianças se adaptam às mudanças, acham novas diversões, passam ilesas às preocupações da vida adulta, mesmo quando são atingidas vez ou outra por suas consequências. Obviamente, passamos a presenciar algumas coisas às quais ainda não havíamos tido contato: brigas aqui e ali, a tensão por não podermos fazer algum programa que fazíamos com frequência antes, a tristeza e a melancolia de um fim de ano sem presentes. Mesmo com tudo isso, éramos 4 à mesa, falando as besteiras de sempre, rindo das histórias absurdas do velho, discutindo escola, futebol e televisão, brincando com a minha mãe. Nunca precisamos de estupidez pra entender que nem sempre o sim aparece, e que o não é consequência da vida sem fábula. Aprendemos a ir atrás.

Assim, crescemos. Mais do que aumentar os dígitos na idade, entendemos o funcionamento da vida em que a gente se enquadra – sim, pois existem tantos outros mundos e realidades paralelos àquilo que somos que seria um absurdo afirmar que entendemos “o funcionamento da vida”. Ninguém entende, porque ninguém vive todos os desdobramentos de um prisma tão complexo em somente algumas décadas. Entendemos o contexto: quem somos, onde estamos, o que fomos e onde queremos chegar. E a partir daí, seguimos adiante – cada um pro seu lado, e do seu jeito. Meu pai deixou essa jornada já há quase 4 anos, e os remanescentes estão aqui: os irmãos casados, um deles com uma filha, e a mãe está descobrindo um novo universo ao qual ela agora pode realizar o quê, quando e como quiser.

Ninguém deve nada a ninguém, pois cada vida é de quem vive.

E por não dever – e viver, me sinto muito feliz e plenamente satisfeito com as escolhas que fiz – são as únicas que sou capaz de responder em algum momento. Um amor, nosso canto, nossas coisas. Nos encontramos no mesmo fundo, de poços diferentes, mas com o mesmo cheiro horrível e total ausência de luz. Subimos, nos conhecendo e nos apoiando, dividimos o mesmo colchão num quarto de apartamento alugado, juntamos os poucos que tínhamos, tapamos os ouvidos – improváveis, errados e incorretos que éramos aos olhos de quem gosta de escolher arroz com a vida dos outros – e chegamos aqui em cima, sem precisarmos nos apoiar nas costas de ninguém. O que se seguiu foi um resgate de valores que nos proporcionamos, e nos tornamos o que somos: olho no olho, sem censuras, construindo nossas próprias regras pra que essa coisa conjunta de “eu mais ela” que hoje a gente chama de família desse certo pros dois.

Tantas linhas pra reafirmar que a vida é curta demais pra gente pensar que o universo gira em torno da gente. Foi na total desesperança que encontrei uma saída. Uma saída que estava afundada em dores iguais ou piores que as minhas, ambas causadas pelos motivos às vezes desumanos, às vezes de pura crueldade. Encontrei na minha história pessoal, dos meus amigos, de gente que em nada se parecia comigo mas que cruzou o meu caminho em algum momento, e até em gente que eu detestava, o repertório necessário pra em momentos difíceis, parar por dois minutos e pensar em “como eu me livro dessa merda e saio desse buraco?”. Pra retomar a ideia do primeiro texto desse novo espaço, e ser inteligente e humilde o suficiente pra pensar nas ações antes de realizá-las; mais do que isso: pra que antes de emputecer e achar que o mundo vai contra quando algo não sai conforme o planejado, ter a decência de me perguntar se não fui eu o causador dos problemas, antes de sair por aí, apontando dedo pros outros. Aprendi, com todo esse mundo de gente que eu amei, odiei, machuquei, perdoei e me desculpei. Tive bons e maus exemplos, nos mesmos lugares. Continuarei a ter, a errar e a aprender. Nunca é suficiente, porque cada dia é uma novidade. E é assim pra todos nós.

Que cada um saiba o que é realmente importante pra si. Que se descubra em cima da sua própria história. Que não precise procurar nas respostas dos outros um mantra pros seus caminhos. Que seja autêntico pra reconhecer os próprios méritos, e inteligente o suficiente pra enxergar os próprios erros. Enxergando, que se corrija aquilo que machuca. Acima de tudo, que entenda que o que se vive aqui nesse mundo é uma sequência de momentos dedicados a quem se ama. É o que somos: agentes realizadores dos sonhos alheios. As lembranças serão sempre aquilo que deixamos nos sentidos – pro bem ou pro mal. Olhos nos olhos.

Assim sendo, amem direito.

Levante e ande

Começar um novo espaço. Não significa de forma alguma esquecer aquilo que se viveu – e nesse caso, que se escreveu. Quando você saiu da 8ª série e foi pro primeiro colegial (não faço ideia como essa gradação de etapas se chama hoje em dia), o uniforme foi aposentado, o jeans foi autorizado, a sensação de sair de um número oito para um número um “de gente grande” te trazia exatamente esse mesmo sentimento: renova-se tudo, mas o ambiente permanece o mesmo – porém, sob uma nova ótica.

Acho que não desaprendi a escrever, mas como é difícil recomeçar. O hábito das palavras se perdeu nos minitextos do Facebook, e toda aquela correria de “fazer logo, e fazer muito”. No fim das contas, a gente acompanha a onda, sem notar quando e como é engolido por ela. Foi meu caso, e uma outra enorme série de fatores que me afastou disso tudo: o tempo cada vez mais curto, o casamento e suas (já nem tão) novas responsabilidades, um novo rumo pra minha vida (com menos, e melhores pessoas num cotidiano cada vez mais caseiro), a morte do meu pai e a impressão que pouco havia de importante a se descobrir na vida após uma perda tão difícil de se descrever pra quem nunca perdeu ninguém – ou pelo menos, alguém tão próximo. Foi tudo ao mesmo tempo, mesmo que esse tempo agregue uns 3 ou 4 anos. Ninguém é obrigado a ser racional o tempo todo, ainda mais quando a pessoa em questão sou eu, cujo cérebro sempre esteve submisso ao coração.

Porém, de uns meses pra cá, a Dé me trouxe um novo momento – mesmo que não diretamente, preciso culpar alguém por um processo tão complexo e tão tardio na minha vida, e acho que ela é a pessoa certa pro meu dedo entregar. Eram tempos difíceis (sempre são, nada é fácil), e num daqueles momentos de desespero sobre o que fazer com a própria vida, ela me entregou um livro. Logo pra mim, que nunca fui de ler. Não, não foi a Bíblia ou nenhum evangelho que o valha (essas coisas pegariam fogo nas minhas mãos, com toda a certeza, e eu tenho coceira sobre obras que falam de alguém que você nunca viu, escritas por alguém que você não sabe quem é – mas isso é papo pra outro texto). Existe uma lei universal, que diz que prevalece o bom senso quando um conselho vem da sua esposa ou da sua mãe, sendo que sua mãe não oferece risco de divórcio – portanto, pra quê subestimar? E lá fui eu, páginas adentro.

O tal livro falava sobre auto-engano, e entendi em duas ou três páginas que sim, aquilo era uma mensagem direta pra mim. Acabei mergulhando no menino, e em poucos dias terminei a leitura. Isso aconteceu no início do ano, e de lá pra cá amadureci algumas coisas que foram plantadas na minha cabeça – não com lavagem cerebral, mas com uma dose colossal de afeto. Poucas foram as pessoas a quem eu confidenciei a vontade de mudar certos aspectos da vida com os quais fiquei bastante conhecido. Não que tivesse vergonha de algo que fui, fiz ou pensei. O passado está escrito, e se a gente toma certa decisão em certo momento, é por acreditar que aquilo é o melhor pra gente. Mas os momentos mudam, e a gente precisa acompanhar as mudanças.

Junte-se a isso o fato de ter vivido nesses últimos anos esse redemoinho de emoções. Mudanças de família, amigos, trabalho, geografia. Era hora de encerrar (ou colocar de lado) uma etapa da vida, e partir pra outra. Mais do que novas perspectivas, novas atitudes. Obviamente, o ser humano que não se permite algumas cagadas, um ou outro dia de fúria, e a intepestividade que somente a loucura que a gente guarda enquanto bate o sol, certamente não está vivendo uma vida real. Acho que recomeçar significa também uma forma de fugir dessa urgência e obrigação que hoje em dia parecem cada vez mais presentes: de viver dias perfeitos, com pessoas perfeitas, de sabores e caráteres perfeitos, medindo palavras e tomando cuidado pra não pisar fora da linha. Esse universo virtual está esterelizando nossas personalidades, e hoje somos muito mais aquilo que parecemos, do que aquilo que de fato sentimos, transpiramos e evoluímos. Um erro de postura, do qual eu não quero fazer parte. Obviamente isso não se resolve inaugurando um blog, mas testar a paciência alheia com leituras de 5, 6, 10, 20 parágrafos, expondo assuntos (quaisquer que sejam) com o cuidado e os detalhes que eu tanto sinto falta hoje – mas que encontro em minhas novas leituras, sejam elas em livros ou em textos de colunistas replicados à exaustão no Facebook.

Primeiro, adquirir o gosto pela leitura, sem que gastar 15 minutos em frente ao computador ou abrindo um livro enquanto a porta do banheiro está fechada me causem uma crise de consciência. Depois, tentar trazer pra cá as coisas que eu quero falar. Sem obrigações políticas com ninguém, sem compromisso “com meus seguidores” (que expressão mais doentia, essa), e sem paranoias quanto à popularidade daquilo que se diz. Se em algum momento algumas linhas foram capazes de influenciar minha cabeça, a ponto de mudar minha postura perante os meus e meu mundo, e num universo onde tão pouco se faz pela reflexão embasada sobre qualquer que seja o assunto, talvez esteja nos faltando essa calma, de gastar algum tempo reforçando aquilo que se pensa, ou conhecendo outro ponto de vista, que gere uma discussão criteriosa – mesmo que ela seja sobre futebol, não importa. Exercitar a tolerância, e repensar a verdade como um resultado da comparação de diversas fontes é apenas um passo.

Mas um passo significa levantar da poltrona, e sair do lugar.