Estamos sozinhos

Eu confesso que ainda estou assustado com o que aconteceu domingo. E vou contar uma breve história pessoal, portanto aos que não curtem leituras um pouco mais extensas, sugiro a desistência aqui mesmo.

De 1984 a 1996 estudei num único colégio. Ensino particular, Jardim Aeroporto, frequentada somente por crianças brancas ou orientais, classe média-alta. Não havia um negro sequer em todo o curso, se bem me lembro. E durante todo esse período, não foram poucas as piadas que a gente contava e ouvia – obviamente, também não eram poupados gays, portugueses (dos quais tenho ascendência), japoneses, gordos, nordestinos, loiras e afins. Temos mais de 30, sabemos que época é essa, e o quão comum era se divertir à custa dos outros. Não era culpa do colégio, pois chegando em casa quantas não foram as vezes que meu pai fazia piada sobre os mesmos temas, variando as histórias, e ao final a gente rachava de rir.

Veio o plano Collor, a economia rachou, e no meio da década de 90 tive que mudar de escola. Fui estudar no Senai. Concurso e o escambau, entrei no curso de Artes Gráficas. Uma turma com mais de 70 pessoas. Não tinha um puto no bolso, estudava na Bresser (Zona Leste de SP), morando no Taboão (zona Sul/Oeste), período integral. Ônibus às 4h50, marmita na mala, passei a dividir marmiteiro, mesa e bandeijão com uma galera que em nada lembrava o povo do meu ex-colégio: rico, pobre, gente que morava em outra cidade, gordo, magro, preto, branco, amarelo, órfão, fumante, playboy. E eu, que tomei um choque ali por não saber lidar com as pessoas que não fizeram parte da bolha em que cresci e vivi até então. Foi bom, eu aprendi muita coisa. A turma em 8 semestres encolheu sensivelmente. Existiam caras muito bons, outros nem tanto. Gente que se dava bem dentro da sala de aula, outros que eram mestres na oficina. A gente precisava um do outro no fim das contas. Dei monitoria de matemática, ajudava a galera a fazer pasta de desenho técnico… era outra vida, muito mais suada e cansativa. Mas era um puta de um tesão.

A imagem da minha infância foi ficando turva. Fosse pelo intervalo crescente de tempo, fosse por uma sensação de que aquele cara que eu havia me tornado em nada correspondia ao moleque tímido, inseguro, chorão e mimado que eu era. E havia a vergonha, de muitas coisas: ter preferido escrever a falar com a menina da sala de aula, nunca ter batido uma bola na pracinha em frente de casa, e sim, ter feito e pensado menos dos outros. Aprendi que o certo era fechar o vidro quando o moleque vem vender drops no semáforo, que quando visse um cara na calçada o mais seguro era mudar de lado, e que lugar de nordestino era levantando laje. Aprendi a chamar os caras de bóia-fria, de cabeça chata, de paraíba.

Pois agora eu tinha amigos nordestinos. Viajaria no final do curso pra Porto Seguro. Dali em diante meu mundo abriu. Conheci gente de tudo o que foi canto – pessoal ou virtualmente, e ocasionalmente com um puxando o outro, vieram outras turmas. Tive meus primeiros amigos homossexuais – meninos e meninas. Fiz muita merda. Fiz muita coisa boa também. E em determinado momento eu olhei pra trás.

Assim como fiz ontem.

E senti muita vergonha de quem um dia eu fui. De ter achado graça do ser humano ser o que é. De ter me sentido superior a um alguém qualquer, fosse qual fosse o momento. Até pouco tempo atrás eu chamava sãopaulino de bambi, de “aquela raça”. Que coisa mais imbecil, ser alguém que se diverte fodendo os outros. Ao mesmo tempo, vi vários desses amigos serem discriminados uma, duas, dez vezes. Alguns não podiam o que eu podia – se expressar livremente em público, amar sem ser julgado – pois “a sociedade não aceita”.

“Quem somos?”, essa sociedade… Quem somos nós, que não somos capazes de levar a sério episódios sérios, absurdos, covardes da História de nós mesmos? Quem é essa gente que ainda acha bonito apontar o dedo e diminuir o cara do lado por ele ter uma estrela ou uma cruz penduradas no pescoço? Que pensa que trabalha mais do que o cara que não fala direito o Português, que não tem emprego, que ganha uma miséria do jeito que dá, e que assim como eu e você tem fome, sede, precisa dormir e precisa morar pra não morrer? Quem somos nós pra saber a merda que fulano passou pra ser o que é – e talvez seja o máximo que ela consiga, pois nós mesmos pisamos na cabeça dele pra conseguir subir na vida? Qual o nome do seu porteiro? Da sua faxineira? Será que eles tiveram uma infância tão segura, feliz e tranquila como a nossa?

Não. Você me lê pela internet. Nós somos a exceção.

Então, crescer achando que quem é diferente da gente automaticamente é motivo de piada, de desdém ou de dó… bem, isso é colocar como cláusula pétrea que não somos capazes de pensar além da nossa bolha. É esquecer que viver em sociedade é sim entender a necessidade do outro, de dar bom dia pro cara no semáforo, pro vizinho de banco na padaria, de ser um pouco melhor todo dia. Um dia me botaram uma camisa do São Paulo quando era criança. Mais pra frente, vi que aquilo era errado, procurei minhas cores e fui feliz com meus novos (e velhos) amigos. Não é possível que a gente continue aceitando, calando e empurrando com a barriga nosso estado de letargia com aquilo que não somos, não temos ou não sabemos. Todos (eu disse TODOS) os meus amigos – próximos ou não, minha família, conhecidos e desconhecidos que de alguma forma eu tenho contato são capazes de ser algo melhor. São capazes de pensar com responsabilidade antes de abrir a boca ou mexer os dedos.

Sei que sonhei muito em um dia conhecer um lugar onde o mundo e as pessoas mudaram depois de determinado acontecimento, e tive oportunidade de fazê-lo esse ano. Sou um privilegiado, mais exceção ainda do que antes. Mas o que aprendi por lá todos nós sabemos, ou pelo menos temos uma ideia muito clara a respeito.

Portanto, e fechando a história (e essa reflexão enorme): não existe justificativa, contexto ou o caralho que seja capaz de justificar um sentimento, um lampejo ou um momento estúpido como o que vivemos ontem. Estávamos há pouquíssimo tempo falando de sentimento patriótico, de abraçar a nação, essas coisas que nunca fizemos porque não fomos capazes de nos unir por um bem comum. Ontem soubemos o porquê disso. Então, ao invés de culpar quem se mexeu de alguma forma – indo pra urna, pra rua ou pra onde fosse, vamos nos atentar àquilo que não estamos fazendo direito. E enquanto esse desrespeito, esse sentimento absurdo de superioridade permear de alguma forma a nossa cabeça, não há cor, nome ou região que resolva: estaremos todos no inferno, e sozinhos.

E solidão é exatamente meu sentimento hoje.

Três parágrafos sobre as eleições de 2014

A atual gritaria reflete nossa total inabilidade de raciocínio. Me surpreende a busca desesperada por fatos (verídicos ou não) sobre “a equipe adversária”, tendo como fim reforçar a simpatia – ou enfraquecer a antipatia – por nossas escolhas. Uma pessoa inteligente não toma partido de última hora, nem se deixa influenciar pela onda de boatos do momento. Chega a ser ridículo o bandeirismo, mais até do que normalmente é. Sabemos como funciona o jogo de poder no país, e isso só vai mudar um dia se nossa mobilização for pelo verdadeiro bem comum – e não por aquilo que nos convém, coisa que 9 entre 10 de nós diz que não, mas continua fazendo. Resumindo: é burrice tomar pra si a pureza de uma cor contra outra, sendo que ambas continuam sendo a mesma coisa, em momentos diferentes. Tomar pra si a responsabilidade de acompanhar PRA VALER os candidatos que votamos (elegendo ou não) seria a primeira coisa adulta a ser feita depois desse carnaval todo. Mas nada vai mudar.

E afirmo isso tomando por base outro fato: as pessoas ignoram os absurdos que vieram ainda mais à tona nessa época – tanto em propostas políticas totalmente incondizentes com o nosso momento (o conservadorismo e as promessas “pelo bem da família” – um jeito bonito de se dizer que não são bem-vindos os pensadores, os homossexuais, os alternativos, e todo aquele que um dia tirou a rédea e viu que o mundo é muito mais que ciência exata, ou aquela fantasia escrita nos livros religiosos) como em opiniões pessoais dos amiguinhos afetados. Há espaço para todos sim – até para os que acreditam na tal fantasia: o problema é a insistência de botar o varal no quintal do vizinho, e achar que está tudo bem. Não está. Nunca esteve, e nunca estará. Se por um momento que fosse a gente conseguisse enxergar que o único bem possível é sermos aquilo que julgamos o melhor, respeitássemos as outras pessoas (que têm toda a liberdade do mundo em sair de casa – seja com um terno impecável ou com uma cueca na cabeça – isso não interfere nas nossas habilidades de comer, dormir, atravessar a rua e foder com maestria), a coisa andaria bem. Mas preferimos tolerar o preconceito, o elitismo, o fanatismo e a intolerância para justificar nossas escolhas.

Portanto, dane-se quem vencer essas eleições. Mais do que mudar alguma coisa lá em cima, devíamos mesmo é estar alarmados pela quantidade de coisas que temos que mudar aqui embaixo. Estamos nos mostrando cada vez piores, e pra variar, justificando nosso modo burro e inconsequente de tomar decisões importantes botando a culpa no vizinho. O na Dilma. Ou no Aécio. Ou no PT. Ou no PSDB.