Os braços abertos

Nesse final de semana São Paulo teve mais uma Virada Cultural, e a Neguinha* foi tocar por lá com o seu Samba de Bolso no evento. Eu nem sou chegado a samba, não preciso nem dizer. Mas ela canta bem demais, a música é boa, e a amizade transcende esses detalhes. Fomos. Chegando lá no centrão, paramos o carro por perto, e fomos nos informar com os policiais da redondeza onde ficava o tal “Palco Braços Abertos”.

– “É ali atrás, na Cracolândia”. – me respondeu a solícita e sorridente PM.

Bateu um frio na barriga. Óbvio, porque a gente – por mais distante que esteja, SABE o que é a Cracolândia**. Fomos andando, e chegamos ao pequeno palco, montado quase em cima da calçada de uma rua, que quando atravessada dava diretamente no bloco onde “os moradores do lugar” ficam zanzando. A gente realmente não sabia o que fazer. Éramos poucos ali, talvez uns 20 ou 30 visitantes, e o samba começando a rolar com a Neguinha toda sorridente e mais branca que geladeira (porque ela é assim, branquinha-branquinha mesmo), cantando sobre alegria e esperança.

Era muita informação. Eu confesso que por alguns minutos me perdi, pra tentar entender o que estava acontecendo. O frio na barriga virou coração apertado.

Esqueçam problemas técnicos, som pipocando, microfonia. Ao olhar pra trás, o que a gente via era um bloco de pessoas espremidas num quarteirão, sem rumo (literalmente, o “zanzar” é o verbo que melhor definia seu movimento). Alguns ficavam um pouco distantes da gente – éramos “as visitas”, num território que em nada conhecíamos – enquanto outros entraram no samba e foram ali pra frente, dançar e curtir aquele momento diferente. Me parecia um absurdo, até um certo exibicionismo dos responsáveis pela Virada “enfiar ali um palco”. Eu não entendia aquilo, mas nesse momento você entra em conflito com sua própria ignorância. Aquilo não é uma prisão, é uma rua. Aquelas pessoas são pessoas, como você, que vieram de uma mãe, de um pai, e que seguiram um curso infeliz demais, que desencadeou naquela coisa que eu não conseguia definir o que era. E elas estavam ali, pacíficas e alienadas, algumas completamente desconectadas daquele momento, outras se deixando divertir em cada música. Elas estavam ali porque elas não fazem parte de qualquer outro contexto – fosse por elas, fosse por aqueles que eram suas famílias, companheiros, amigos. Elas estão perdidas, e reunidas num lugar que a gente chama de Cracolândia, mas que é uma rua. Uma rua igual a tantas outras, em que tanta gente vive por aí, seja pelo motivo que for. E elas – ou algumas várias delas – estavam dançando. Elas pareciam um pouco mais felizes do quando a gente as vê na TV, com a cara pixelada e voz distorcida.

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Não sei se existe contexto, pois a cidade é a mesma, e achar que elas, ou o palco, ou a prefeitura, ou quem fosse “estava fora de contexto” foi minha primeira briga pessoal comigo mesmo. Perguntei se a Dé queria ir embora, e ela não queria, E nem eu queria, e cacete, não havia motivo pra ir embora dali, porque a realidade pode ser feia, cheirar mal, ser incompreensível, mas cacete, quanto disso também não é culpa minha por justamente me excluir de saber o que fazer com essas pessoas (e com todas as outras, quando a gente fala “da nossa comunidade“, “da nossa cidade“, “do nosso país“). O que é de fato esse “nosso“? Nosso é “aquilo que é de todos nós“, e as pessoas não se diferenciam quando falamos de todos, pois uma daquelas moças estava tentando ensinar a um de nós, “visitantes”, como sambar. Ali, na minha frente. Não havia nada de errado na alegria de ambas, por mais distantes que fossem as suas realidades. E eram MUITO distantes, acredite.

Foi aproximadamente uma hora de show. As músicas foram muito bem escolhidas, pra variar – a banda é ótima, a Neguinha nunca escolheria parceiros ruins com o talento que ela tem. Mas foi acima de tudo uma experiência aquilo tudo, que eu ainda não consigo entender. Ela me contou depois do show que aquilo faz parte de um projeto do governo que não fica só na Virada Cultural, mas cuja amplitude é bem maior. Eu fiquei feliz, preciso entender do quê se trata pra tentar limpar um pouco minha mente e talvez cultivar um pouco mais de esperança. É daquelas iniciativas que não geram votos, porque não nos atingem diretamente – afinal, se você está lendo esse texto de um blog, possivelmente sua vida não é baseada em crack – não existe wi-fi na Cracolândia. Mas são mais importantes do que novas estações de metrô, estádios de futebol, centros culturais. Não existe melhoria na mobilidade urbana, quando se tropeça em gente pelas sarjetas. Acho que as prioridades existem sim, mas antes de qualquer uma está a dignidade do ser humano (por mais difícil que seja pra gente enxergar isso – seja quando o trânsito pára, quando um aumento é anunciado, entre tantos abusos que tanto incomodam a gente antes desse negócio todo).

Mas lembro bem de todos os dias ler gente defendendo partido A ou B como se fosse partida de futebol. De descerem o pau em projetos que a gente mal sabe o que propõem. Eu não sei se o tal “Braços Abertos” já foi um dia chamado de “Bolsa Crack” ou coisa do tipo, mas acho que sim. Se foi, eu digo: que seja. Eu não sei se é o jeito certo, o jeito errado, mas alguém está fazendo alguma coisa. Aquelas pessoas precisam de ajuda. Elas precisam se sentir humanas, porque ninguém tem culpa de escolher o caminho errado. Eu já perdi gente muito próxima por causa de droga. Eu perdi um pai que priorizou o vício à própria saúde. Quem sou eu pra comparar minhas pontuais experiências de vida à realidade COTIDIANA daqueles adultos, crianças, velhinhos? As pessoas erram. Eu errei julgando aquelas pessoas e aquele lugar, que até agora não entendo como funciona e de que forma – então sim, eu também preciso de ajuda – uma ajuda que eu sou capaz de alcançar ME educando.

Eu não sei qual o tratamento que um dependente precisa. Eu acho que o mundo não precisa de manicômios, como a Beta fez questão de afirmar durante toda a semana num movimento que rolou no Rio durante esse fim de semana. Acho que um lugar chamado Cracolândia não devia existir sob nenhum contexto. E mais do que tudo: eu admito que sou (e sempre serei) muito ignorante, e que julgar qualquer coisa ou pessoa sem o mínimo de conhecimento é de uma leviandade absurda. É desumano. É burro. E eu sou tudo isso, quando faço e insisto numa posição que eu tive a felicidade de abrir mão ao ter um mínimo e distante contato com uma das coisas das quais tinha medo – e que a partir de agora, farão parte de um contexto que eu espero não mais esquecer. A gente é naturalmente ignorante, e por isso mesmo, toda informação sempre será pouca. Fechar juízo é desistir de pensar, e por muito tempo eu fui assim. Não sou (e não serei) mais.

Sei que vi gente que teve um mínimo de felicidade naquele intervalinho de tempo. Gente que pôde ser tão feliz quanto eu, mas que após a hora seguinte tomou pedrada de granizo na cabeça, enquanto eu estava abrigado no meu apartamento quentinho.

E isso não é um pensamento reconfortante, mas MUITO perturbador.

* Queria agradecer publicamente a você e a toda a tua banda, que me proporcionaram uma das experiências mais intensas que tive na vida. E espero que ela renda frutos na minha cabeça pra um futuro nem um pouco distante. Num mundo tão impessoal, eu preciso sim agradecer a quem é capaz de reumanizar as pessoas – e que abençoados vocês, que trouxeram um pouco de vida pra tanta gente ontem. Foi muito bonito mesmo.

** A Cracolândia é um lugar localizado entre a Alameda Dino Bueno e Rua Helvétia, no centrão, perto da Estação Júlio Prestes. E apesar do nome altamente pejorativo, é isso mesmo: um lugar onde ficam os dependentes de crack. Eu preferi usar o termo pra deixar claro onde e como estão as coisas ali, pois acho igualmente babaca você chamar um mendigo de morador de rua. É aliviar uma expressão que te dói o ouvido, por você, eu e todos nós termos responsabilidade direta em continuarmos marginalizando essas pessoas.

Manzarek

A estrela sempre foi outra no The Doors, com justiça. A poesia vivia nas palavras de Jim Morrison, e ganhava vida na música dos outros três. Ninguém lembra muito de Manzarek, Densmore e Krieger, pois a figura icônica da banda foi imortalizada na imagem do vocalista, imortalizada em sua foto sem camisa, braços abertos e olhar penetrante. Simples e intenso. As músicas da banda, pelo contrário, são de uma complexidade absurda – as composições permanecem únicas, pouco do que foi feito desde seu surgimento consegue se aproximar da sonoridade deliciosamente tosca que compreende as gravações daquela época. E é de fato muito difícil fugir da hipnose causada pela voz de Morrison – que mais do que a imagem marcante, possuía um timbre capaz de te derrubar nos primeiros acordes de qualquer música num transe interrupto.

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Ninguém discute a capacidade artística do The Doors: gostando ou não, foi uma banda única, absolutamente autêntica. Poucos se firmam na História com esse adjetivo, ainda mais deixando uma obra tão popular, influente e atemporal quanto eles. E a peculiaridade talvez se explique desde o início, numa combinação sonora muito pouco usual: sem baixo, com teclados. Chegamos a Ray Manzarek.

Que faleceu ontem, vítima de câncer. Existem sites aos montes descrevendo sua história, e não serei eu a fazer coisa melhor. O que posso de fato dizer é que poucos tiveram a capacidade de trazer tanto peso e força à música com um instrumento habitualmente utilizado para florear uma melodia. Um cara capaz de compor verdadeiros riffs, algo que normalmente se atribui aos grandes guitarristas, e a uns poucos bateristas. Ouvir cada disco do Doors é imergir num universo lisérgico e de poesia que passam longe do tédio. As letras não são declamadas, mas rasgadas com a voz rouca de Morrison, e os teclados de Manzarek te empurram ladeira abaixo sem dó nem piedade. Assim como aconteceu com o Zeppelin, o Who e outra meia dúzia de monstros, a banda foi a feliz união de alguns caras que combinavam perfeitamente talentos absurdos.

Por isso, é muito triste quando alguma dessas figuras desaparece. A gente esquece que a importância de alguns ídolos só é reconhecida hoje por um “aparato” que permitiu que eles brilhassem algum dia. Resumir Ray Manzarek a um simples ajudante seria menosprezar seu talento, mas Jim Morrison conseguiu traduzir a obra atemporal de uma banda diferenciada em versos assustadoramente fortes. Difícil competir. Mas não somar, e isso ele fez com maestria, com dígitos maiúsculos e melodias que conectam ouvidos e coração de uma forma inexplicável. Nada se compara ao Doors, pois nunca teclas serão capazes de soar mais alto que cordas. Não dessa forma, e não dividindo um palco com Jim Morrison.

Ficam as palmas. E mais um vazio que a gente preenche com música.