Curtindo?

Eu saí porque tinha cansado. Tinha cansado dos mimimis.

Foi assim que uma amiga justificou sua desistência do Facebook (substitua por sua rede social de preferência, acho que a análise não se restringe especificamente a um nome – isso vem desde o agora moribundo Orkut). Essa asca de redes sociais não é exclusividade dela, muito pelo contrário. Eu mesmo desisti do twitter já faz um bom tempo, me recusei enquanto pude a entrar no tal G+ (e só tenho uma conta lá hoje pra poder utilizar melhor o tal Hangouts – o substituto do Google Talk, já que o MSN desapareceu, e o ICQ então, coitado…), e tenho um celular do tempo das cavernas que deveria ser um smartphone há muito tempo – mas momentaneamente me falta dinheiro, e as prioridades reais ainda prevalecem ante o anseio tecnológico.

Mas culpar a tecnologia é um expediente muito cômodo. Ela funciona sim num avanço contínuo e infinito, de forma cada vez mais rápida, e com a capacidade de escravizar os que vêem no consumo um meio de auto-afirmação. Mais do que isso: as tendências criadas pelos mais influentes – os tais formadores de opinião – ditam regra inclusive aos que não podem bancá-la, mas não querem ficar de fora. No final das contas, a popularizamos, mas não utilizamos nem sequer metade àquilo que de fato se destinam. Não que isso seja novidade: quem conseguia programar um vídeo-cassete? utilizava todas as funções do forno com grill? as lavagens de roupa diferenciadas?

Vivemos um tempo bizarro de adestramento tecnológico.

Saímos por aí imitando hábitos que sequer se justificam, numa propagação bisonha de porra nenhuma. E no fim das contas, colocamos a culpa no Facebook (e no meu caso, por exemplo, no twitter). Talvez por em algum momento termos entendido o conceito da tal globalização, tão pregada há anos. Porém, um universo sem fronteiras não é necessariamente um universo sem portas e janelas. Mais do que todos compreendermos que de fato vivemos debaixo do mesmo céu, é preciso lembrar que “sermos matéria” consiste em ocuparmos espaços. Delimitarmos territórios. Não, a ideia não é um universo de microcosmos, mas que voltemos a ser donos do nosso próprio espaço. Para isso, a primeira coisa a fazer é justamente… termos um.

Porque aparentemente o que acontece cada vez mais é uma necessidade constante e crescente de vivermos nossa vida pros outros, muito mais do que pra gente. Será que de fato me importa saber se você está brava porque pegou trânsito na terça de manhã? Se você acha esse grafite inspirador? Que o frio te faz espirrar e ter dor de cabeça? Que você não aguenta mais seu emprego (e isso acontece todos os dias)? Acho que não, meu amigo… esses são problemas seus, e não assunto público. Mude o trajeto (ou o veículo), tome pra si suas próprias lições, compre um antigripal e peça demissão se for o caso. Serão quatro reclamações a menos infestando a vida alheia, e você muito menos amargo aos olhos de quem tanto te faz querer impressionar. Existe uma emergência absurda – e uma energia enorme gasta – em ser durante todo o tempo uma série de coisas. Todas, ao mesmo tempo:

1) O formador de opinião;
2) O mais sexy;
3) O gourmet;
4) O piadista;
5) O politizado;
6) O repórter que dá o furo (na inocência);
7) O cara deitado no divã do analista.

(Troquem os Os por As sempre que quiserem)

Aquela coisa infantilóide de ser o mais popular da turma se transformou nessa rotina bitolada de cliques a esmo. Curtimos 150 vezes por dia, compartilhamos outras 50, mas não temos a capacidade de ligar pra um desses 600 amigos pra marcar uma cerveja. Damos uma importância absurda à qualidade da câmera e trocentos filtros do smartphone (que nos permitem ser ainda mais ativos nas redes), mas não somos capazes de colocarmos o danado na orelha e perguntar se o tal amigo que fica espirrando em dias frios está melhor quando o sol enfim deu as caras. Viramos essa coisa insípida, o tal admirável mundo novo – porém, cercados de status vazios, propagandas enganosas e sabedoria descartáveis.

E a propagação disso tudo, feita sem pensar, não reflete aquilo que crescemos aprendendo: pensar antes de falar, procurar saber se é verdade, se perguntar se o cara do lado (e são tantos nesse universo) de fato precisa ouvir, ou ler, ou saber daquilo. No fim, nossas mãos viraram verdadeiras metralhadoras, em busca de uma visibilidade mais frequente, de discussões mais acaloradas sobre o tema do dia, essas coisas… fora da tela (grande ou pequena), nossos outros órgãos refletem a mesma urgência e estupidez: o peito ansioso por saber o que fulano escreveu no mural, a boca se presta a uma verborragia assustadora que faz do mundo seu analista, e os ouvidos praticam o desapego, ignorando a localização física do cérebro entre as duas orelhas.

Dá pra entender a asca da minha amiga. Mas acho que o problema não tem a ver com o Facebook na função de rede social (uma sociedade que não se vê, não se fala, não se cheira e não se vive é uma sociedade que a gente deve duvidar) – mas sim enquanto agente de propagação dessa rotina vazia que cada dia mais nos deprime, mas que não mexemos uma palha pra mudar. É uma pena… pernas, braços, cabeça e coração continuam, até onde imagino, com as mesmas funções que sempre tiveram nesses últimos 2000 anos.

Porém, nesse momento, com utilização bastante limitada. E a culpa é nossa.

Manzarek

A estrela sempre foi outra no The Doors, com justiça. A poesia vivia nas palavras de Jim Morrison, e ganhava vida na música dos outros três. Ninguém lembra muito de Manzarek, Densmore e Krieger, pois a figura icônica da banda foi imortalizada na imagem do vocalista, imortalizada em sua foto sem camisa, braços abertos e olhar penetrante. Simples e intenso. As músicas da banda, pelo contrário, são de uma complexidade absurda – as composições permanecem únicas, pouco do que foi feito desde seu surgimento consegue se aproximar da sonoridade deliciosamente tosca que compreende as gravações daquela época. E é de fato muito difícil fugir da hipnose causada pela voz de Morrison – que mais do que a imagem marcante, possuía um timbre capaz de te derrubar nos primeiros acordes de qualquer música num transe interrupto.

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Ninguém discute a capacidade artística do The Doors: gostando ou não, foi uma banda única, absolutamente autêntica. Poucos se firmam na História com esse adjetivo, ainda mais deixando uma obra tão popular, influente e atemporal quanto eles. E a peculiaridade talvez se explique desde o início, numa combinação sonora muito pouco usual: sem baixo, com teclados. Chegamos a Ray Manzarek.

Que faleceu ontem, vítima de câncer. Existem sites aos montes descrevendo sua história, e não serei eu a fazer coisa melhor. O que posso de fato dizer é que poucos tiveram a capacidade de trazer tanto peso e força à música com um instrumento habitualmente utilizado para florear uma melodia. Um cara capaz de compor verdadeiros riffs, algo que normalmente se atribui aos grandes guitarristas, e a uns poucos bateristas. Ouvir cada disco do Doors é imergir num universo lisérgico e de poesia que passam longe do tédio. As letras não são declamadas, mas rasgadas com a voz rouca de Morrison, e os teclados de Manzarek te empurram ladeira abaixo sem dó nem piedade. Assim como aconteceu com o Zeppelin, o Who e outra meia dúzia de monstros, a banda foi a feliz união de alguns caras que combinavam perfeitamente talentos absurdos.

Por isso, é muito triste quando alguma dessas figuras desaparece. A gente esquece que a importância de alguns ídolos só é reconhecida hoje por um “aparato” que permitiu que eles brilhassem algum dia. Resumir Ray Manzarek a um simples ajudante seria menosprezar seu talento, mas Jim Morrison conseguiu traduzir a obra atemporal de uma banda diferenciada em versos assustadoramente fortes. Difícil competir. Mas não somar, e isso ele fez com maestria, com dígitos maiúsculos e melodias que conectam ouvidos e coração de uma forma inexplicável. Nada se compara ao Doors, pois nunca teclas serão capazes de soar mais alto que cordas. Não dessa forma, e não dividindo um palco com Jim Morrison.

Ficam as palmas. E mais um vazio que a gente preenche com música.

A tal Virada Cultural

Nós, que vivemos seguramente dentro da nossa caverna, aqui nos arredores da Vila Sônia, resolvemos tomar coragem, abrir mão do edredon, do tapete felpudo e dos DVDs pendentes, e encarar o show do George Clinton na madrugada de sábado pra domingo nessa nona edição da Virada Cultural de São Paulo.

O casamento nos deu uma razoável preguiça social. Doença pré-existente, que já limitava a poucos os convidados de nossos pontuais eventos, mas que se agravou com minha reclusão profissional (e o convívio extensivo dela com uma galera que dispensa comentários, tal o nível das papagaiadas que a Dé é obrigada a aturar diariamente). Sendo assim, topar a Virada nos deixou com um sentimento engraçadíssimo de… desconforto. Sair de casa tornou-se uma aventura aos trintões reclusos, mas mesmo assim topamos a empreitada (a qual custo, caberiam outros inúmeros parágrafos, mas vamos manter o foco, porque o assunto e o relato são extensos).

Deixamos o carro em casa (sensatez não tem idade), e fomos de ônibus até a Paulista. O show seria às 3h e saímos de casa por volta das 22h30 – antes do sono bater e o desânimo vencer. Descemos na esquina com a Consolação e andamos pela avenida, procurando um canto pra primeira cerveja e alguma coisa pra preencher o estômago. Estava esvaziada a velha conhecida, que por tantas vezes nos serviu de destino quase que por inércia. Sabíamos a quantidade de bares (todos) que frequentamos (muito) por lá e seus arredores. Há tempos não nos arriscávamos pelas bandas, e esse saudosismo só deixou a experiência toda com ares mais interessantes. Acabamos na ainda tímida fila do Black Dog, que assim como a Paulista, perdeu o brilho: o sanduíche diminuiu de tamanho, aumentou o preço, minguou o recheio, veio com dois guardanapinhos lindamente embalados e demorou uma vida pra ficar pronto. O que aconteceu com esse mundo pra ele se tornar tão politicamente correto? Até o sinônimo da ogrice desmedida e emporcalhada foi pelo ralo… e não que faça muita diferença nessa altura das nossas vidas, mas entre as recordações despertadas durante o programa da noite, fazíamos de tudo pra melancolia não “chegar chegando” quando a conclusão sobre certas verdades era a de que havíamos vivido coisa melhor década antes. Com coragem e bucho cheio, fomos então pra estação Santa Cecília – a mais próxima dos dois palcos que iríamos: o Júlio Prestes, e a Pista Princesa Isabel.

Quanto ao palco trance, a Dé pareceu curtir. Quanto ao show do show do George Clinton, excelente. Mas creio que essa seja a menos importante das discussões. Pra quem nunca tinha encarado a madrugada (e a Virada, própriamente dita), preciso ser claro: não é mole.

As dificuldades e problemas da cidade não desaparecem durante o evento. Sim, é fato – seria muita ingenuidade imaginar que a cidade propiciaria “espasmos paradisíacos” nessas horas, e tudo seria perfeito. O ponto a ser discutido é o que ocorre: o oposto, aquilo que já é evidentemente problemático, se agrava a níveis bizarros. Passear pelo Centro é uma aventura – eu já trabalhei no Viaduto do Chá, e sei o quão apaixonante e desafiador é se ambientar com o caos estabelecido diariamente naquele lugar. À noite, como em qualquer lugar, as coisas tomam novas formas. E damos uma pausa na conversa.

O evento tem como mote principal o desenvolvimento cultural, por trocentos e diversos meios. Assim, o mais provável dos primeiros motivos para que as pessoas o frequentem seja justamente o de assistir um show, um filme, um espetáculo (ou vários deles), dada a riqueza de variedades que a cidade é capaz de propiciar. A programação da Virada deixa isso muito claro – a ponto de termos ido assistir a um show de funk, e (a Dé) dançar num espaço de trance. Eu, roqueiro assumido, procurei mas não encontrei “nada pra mim” dessa vez. Poderíamos ter feito outra tonelada de coisas, se nossa saúde e disposição permitissem. Pausa feita, voltemos.

Havia policiamento perto dos palcos, havia alguma organização. E obviamente, haviam milhares de pessoas. Independentemente daquilo que cada um se preste a fazer num evento – ainda mais num que é gratuito, foi muito difícil relaxar e curtir num contexto notoriamente perigoso (não pouco, mas muito): as vias de acesso eram totalmente obscuras, quase nenhuma sinalização que não fosse pelo som vindo dos palcos, e praticamente ninguém preparado para dar um suporte a algum perdido/turista que surgisse (quantas não são as pessoas que moram por toda a vida em SP e não sabem onde fica tal rua em tal bairro?). Contar com o bom senso de que quem se mete num negócio desses vá preparado pra saber onde fica cada coisa equivale a imaginar que os que vão aos shows estejam todos cheios de boas intenções e prontos para adquirir cultura por 24 horas, e somente isso.

“Não tem mais bobo no futebol”, Galvão.

Vale lembrar que a tal Virada Cultural não é um “presente” oferecido à população, mas sim um evento organizado pelo governo, e pago com nossos impostos – impostos esses que somam o valor integral de 5 dos 13 salários pagos anualmente pelo trabalhador registrado. E como todo evento que se preze, necessita de um mínimo de infraestrutura, equipes (técnicas, de segurança e auxílio) minimamente capacitadas pra atender e oferecer à população aquilo a que se presta a tal data: entretenimento, cultura e segurança. Se o transporte vai virar a madrugada, que seja suficiente e bem-feito; se existem caminhos a serem percorridos, que sejam sinalizados, bem iluminados e seguros; se é algo pra toda a família (e leia-se família não somente um casal de 30 anos, mas crianças, velhinhos, pessoas com necessidades especiais de acesso e locomoção), que seja respeitado o bom senso – para que as pessoas sejam respeitadas em paralelo. ÓBVIO que pra que isso funcione, se exige educação de quem participa – e pelo menos por aqui, exigir algo dessa natureza de alguém equivale a pedir para que o porteiro do prédio te atenda em russo. Porém, isso não isenta a organização de fazer a sua parte. E ela não fez.

O que se viu enquanto estivemos lá foi um festival de nóias proliferados aos montes, fazendo merda atrás de merda. Minha amiga apelidou prévia, justa e cinicamente o horário de Walking Dead. Durante o dia de hoje, vimos que alguns arrastões, trocentos assaltos e duas mortes* aconteceram nessas 24 horas. Não surpreende. Li numa postagem replicada por alguns amigos que o Gilberto Dimenstein escreveu que:

“Está aí exatamente o nosso maior desafio: ocupar as ruas, com todos o seus riscos, para que não sejam o território do medo. Trazer multidões para as ruas é um misto de ousadia e ato de simbólico de resistência contra a barbárie. Não podemos ficar reféns do medo. Precisamos exigir não só cada vez mais segurança, mas sobretudo mais educação e cultura – aqui está a verdadeira segurança nas ruas. Perdi o celular. Mas como confio no poder da educação, não perdi a esperança.”

Me desculpem, mas eu discordo. Não dá pra chamar de ousadia você botar a cara na rua e de repente receber um tiro ou uma facada por causa de um celular, uma carteira, por ter pisado no pé de alguém, ou às vezes por nada (não se sabe qual mal se faz a quem não está num mesmo universo que você naquele momento) – isso não é ousadia, é burrice. Não podemos ficar reféns do medo, mas estamos. Talvez seja fácil ter esperança quando tudo o que se perde é um celular, e não um filho. Contra isso, a tal mobilização de milhares pela cultura, sem esperar um chamado, uma data e um local dos mesmos governantes que não te propiciam o bem-estar que você paga pra ter, mas que no fim das contas patrocina a violência, a desigualdade social e a criminalização de quem não tem acesso a absolutamente nada. Não é simplesmente ter esperança, muito menos cantar uma música pra obter a carteira de volta, mas oferecer saídas reais e com o imediatismo que a situação da cidade (não só dela, mas nesse caso) exige. Poesia e seriedade têm andado cada vez mais distantes, mas vêm sendo confundidas quase todo o tempo.

Sim, eu me sinto ameaçado quando um vulto esbarra na minha esposa, e torço pra que o esbarrão tenha sido só de corpo, e não uma violência que a tire de mim. E sim, talvez a culpa disso seja minha, por ter aceitado minha ilha de conforto ao invés de “abraçar a cidade” (alguns termos românticos da moda se tornam ridículos na iminência de um risco real). Mas quando você nota que nada muda – e é um prefeito num primeiro mandato, que poderia perfeitamente aprender com lições anteriores e investir um pouco mais numa proposta que, se verdadeira algum dia, pode iniciar um processo de evolução de consciência quanto à cidadania que meia dúzia de nós possui, e 99% passa longe na maior parte do tempo, que desperdiça uma oportunidade dessas pra dar um passo importante para o povo e a cidade, desanima. É justa a afirmação da rua enquanto espaço público, assim como é justa a reivindicação por punição para quem lesa, liberdade pra quem se expressa, e retorno pra quem contribui. Num mundo perfeito, é assim que funciona. Mas não está funcionando.

Todos esses assuntos relacionados têm sempre uma solução comum a longo prazo: a tal educação. E parece que sempre que o veredicto é esse, a preguiça por cobranças para um início (real, que não significa construir escolas – elas nunca são construídas) e desenvolvimento (de um pensamento sobre os valores pessoais, de sociedade, e de um coletivo que inclui aqueles que você jamais viu na vida, mas que vivem no mesmo mundo que você e às vezes lavam sua roupa, fazem seu pão ou limpam o chão que você pisa) desse processo que só vai desencadear uma geração com a devida consciência lá na frente – a minha já se perdeu – ganha a mesma força do que a nossa em sair de casa numa madrugada de sábado pra ir à Virada Cultural**.

*Quando a gente diz “duas mortes”, as pessoas sequer tomam conhecimento hoje em dia, tal a banalização da coisa. Mas talvez valha a reavaliação se você, pessoa insistente que leu esse texto até o fim, substituir duas pessoas próximas a você num cenário desses, e pensá-las mortas depois de um evento “cultural”. É, machuca.

**A iniciativa continua sendo excelente, e o evento absolutamente necessário para validar a cidade como centro de cultura e diversidade (ah, a diversidade que tanto incomoda…) do país. Mas repensar seu modelo é igualmente necessário.

O frentista que me deu a Bíblia

Estava em São Bernardo, se não me engano. Fim de tarde, já havia feito o que tinha que fazer (e não me lembro do quê exatamente). Bora abastecer o carro e voltar pra São Paulo. Encontrei um posto de gasolina próximo ao retorno, estacionei, e enquanto esperava fora do carro o frentista veio puxar papo comigo…

– Esse trânsito tá foda – ele disse.
– Pois é, não tá fácil pra ninguém.
– Trânsito, essa gente mal-educada, estressada, povo estranho esse sem paciência.
– Pois é, nego fala o que der na telha, e a gente que não tem nada com isso que se foda.
– É rapaz! Eu ouço cada coisa aqui que você não faz ideia… pra acalmar, eu dou uma respirada e procuro a coisa certa a fazer, ao invés de sair por aí fazendo igual, sacomé? Ó, se você quiser, dá uma lida aqui no meio do trânsito quando nego vier te encher o saco – abre qualquer página e lê que ajuda. Leva que você é gente boa.

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E me deu uma biblinha. Mirim. É o que tá escrito na capa. Guardei no bolso e agradeci pela gentileza, mesmo sendo completamente avesso ao livro em questão, ali estava um cara de bom coração e boas intenções: a biblinha podia ser um copo d’água, um sabão no vidro do carro, uma calibrada de pneu, um desconto na gasolina. Mas era esse o presente  dele, e seria uma baita grosseria recusar. Acabei de encontrá-la, em meio à bagunça na arrumação do escritório. Sim, a biblinha do cara do posto continua comigo, e eu vou guardá-la naquela caixa de memórias que todo mundo tem, pois a recordação que eu tenho dela é a de um papo tranquilo com um cara que nunca havia visto a minha cara, que não se preocupou com o que eu iria achar, fazer ou dizer sobre aquilo, mas que achou por bem me fazer um agrado porque “eu sou gente boa”.

Sem forçar a barra. O ser humano ainda tem jeito quando aquilo que nego vive pregando besta e gratuitamente por aí (quase sempre da boca pra fora) sai naturalmente de dentro do peito de uma pessoa de bem. Ninguém duvida da validade da mensagem: o que a gente duvida mesmo é da validade das pessoas.

Dá pra acreditar.

Sabão de coco?

A gente sonha um dia em poder ter um espaço só nosso, onde se possa fazer as coisas do seu jeito: estender uma rede, pintar uma parede colorida, encher a geladeira de cerveja e comer porcaria, chamar os amigos pra virar a noite falando besteira, encontrar um aconchego que se sinta saudade quando distante. Tem gente que gosta de janela grande, de varanda gourmet, de cama king size, de sala grande, de cozinha americana, de ar condicionado. E tem gente que não faz questão de nada disso, desde que a porta feche, a privada não vaze e a geladeira funcione.

Eu sonhava em ter um lugar pra acordar de domingo, e aproveitar a preguiça. Como já morei em sobrado enorme e apartamento minúsculo, não fechei uma ideia mental desse “ambiente perfeito”. Um teto, e depois o que vier: pufe, sofá, tapete. Uma TV. Casei com uma menina que dormia no chão, e que por muitas noites dividiu um micro com um monitor de 17″, que rodava DVD. Servia quase como um sonífero eletrônico, tal a força que a gente fazia pra ler legenda naquela coisa minúscula. Funcionava pro que fosse, e a gente teve noites e noites de pura felicidade nesse cenário de dois elementos.

Depois de construirmos o que temos hoje (sim, constrói-se quando a gente tem metas e trabalha pra isso – danem-se se as paredes já estiverem de pé: transformar uma casa em um lar é responsabilidade de quem vive debaixo desse teto), hoje pela manhã desmontei após mais de 3 anos a última caixa de nossa mudança. Senti orgulho, muito orgulho de termos nesses 60m² o nosso canto. A parede vermelha, a rede estendida, o quebra-cabeças jogado no meio da sala sem que ninguém te encha o saco por estar lá. Sei muito bem o quanto minha pequena quis um dia poder ter tudo isso pra si – ela também é feita de gostos simples. Eu, tenho aqui meu escritório, minhas fotos penduradas, uma cozinha em que não preciso torcer a coluna entre esquentar a água e picar uma cebola. Me basta.

A pintura da parede do corredor está rachada. O teto do banheiro precisa de um bom trato. Nem mexemos no quarto, que ainda é meio de quem saiu – muito mais do que de quem entrou. Faltam coisas, claro que faltam, sempre faltarão, mas a gente tem nossas prioridades. NOSSAS prioridades, que não dizem respeito a absolutamente ninguém. A Dé precisa matar um dragão por dia, sendo que esses dragões são cada vez maiores, e ela volta pra casa detonada, física e mentalmente. Eu preciso caçar os meus dragões, que ultimamente têm sido mortos com muito sangue, exatamente como se deve ser. Tudo o que a gente quer é, a partir das 18h30, derramar o corpo na sala e curtir um pouco nosso casamento: conversando sobre o dia (e sim, ela fala- e como fala, e ri, e esbraveja, e xinga, e depois ri de novo), assistindo série, comendo uma pizza, jogando um videogame, ficando de preguiça.

Claro que 90% do que acontece aqui em casa não diz respeito a ninguém. A NINGUÉM. Ambos temos dias ruins, mas a diferença é que a gente se entende. Se suporta. Se levanta. Já sabe ler onde acontecem os problemas, e os resolve na mesma hora, pra que não se tornem uma bola de neve que arrebente nossa cabeça lá na frente. Temos feito isso há mais de 5 anos, quase 6. É natural, a gente nem se preocupa com a besteiragem que cobram da gente por aí. Já chorei muito no ombro dela, esbravejei, me perdi e me encontrei – e vice-versa.

Filhos? Mudanças? Adaptações? Obrigado, mas SÓ A GENTE sabe o que quer. E se quer. Talvez o nosso “problema” seja esse: a falta de dependência dos outros. Ficou meio ridículo ter que sair por aí justificando o porquê de passagens aéreas ao invés de exames pré-natal… como se alguém tivesse alguma coisa a ver com as nossas coisas. Não me lembro de sair por aí perguntando o porquê fulano trocou de carro, sicrano pagou R$ 2000,00 num celular, atualizou o iPad cujo modelo antigo não completou nem um ano. Não me diz respeito, por mais que eu não entenda, e acho que quem escolhe A, B ou C pra vida não está a fim de ficar por aí justificando suas decisões. Mas convenhamos: viver a vida do outro é uma baba, se compararmos a dificuldade que é viver a nossa.

Portanto, o fechamento desse texto poderia ser um desabafo, mas prefiro substituir o “estado nervoso” por dois exemplos de reflexão que fizeram parte da minha vida:

1) um, dado pelo meu pai e relatado por minha mãe depois de muito tempo, quando de uma certa intervenção da minha avó quanto à alguma coisa que eu fiz – meu pai virou-se pra ela e disse: “Dona Lina, dentro da minha casa quem cuida do meu filho sou eu, e a senhora não tem nada a ver com isso”. Sim, a casa é de quem compra e nela vive, e as coisas que acontecem (ou não) dentro dela, idem. Se você costuma limpar as mãos na toalha da sua mesa, pense se é educado fazer o mesmo na toalha alheia;

2) e outro conselho que tive há pouco tempo, vindo de uma crítica do meu irmão, e posteriormente (sim, me mostraram duas vezes o mesmo problema – o que já é suficiente pra ligar o bom-senso e fazer uma autocrítica) de um apontamento da Dé, que me disse: “Aprenda a dormir com os problemas, antes de sair por aí reagindo que nem um louco e falando merda pros outros”. Deu resultado, porque é importante ouvir o que a gente é, principalmente quando a avaliação sai da boca de quem a gente fere. E pensar a respeito, se aquilo for uma recorrência. Se eu ainda tivesse meus cabelos, alguns teriam sido poupados se eu aprendesse isso antes.

O orgulho da manhã foi ofuscado pelo absurdo da noite. Mas não tem erro: problema, a gente resolve. Mas resolve pra valer, e de uma vez por todas. Nosso caminho nunca foi fácil, e mesmo quando parece ter se tornado menos espinhoso, inventam mais um obstáculo logo à frente, como se já não tivéssemos sofrido o suficiente até hoje, nem problemas do dia-a-dia pra resolver…

Felizmente a gente não precisa levantar a voz pra se fazer ouvir. Argumento resolve.

Amem direito

Uma das coisas mais importantes pelas quais passei em minha vida foi coincidentemente o possível pior momento profissional dos meus pais – mais especificamente, do meu pai – numa época em que ele era o único a trabalhar em casa (éramos crianças, ele estupidamente transformou minha mãe de profissional dedicada a dona de casa, e ela estupidamente aceitou essa condição: mea culpa para ambos, numa época em que isso era condição normal). Acabou o lazer, acabou o impulso consumista, e por muito pouco não acabou a comida. Natal, aniversário, datas do comércio… foi tudo pro espaço, e a gente TEVE que entender e se adaptar a isso. Mudamos de escola particular pro Senai (e se não passássemos no concurso, era colegial em escola pública ou parar de estudar), o carro apodreceu e veio o transporte público, e o casarão em Santo Amaro deu lugar a um apartamento possivelmente 7 ou 8 vezes menor.

Nossa infância “foi encerrada” em certo momento, com tudo isso acontecendo.

Mas não faltou carinho. Nunca faltou diálogo, muito menos olho no olho. A gente (eu e meu irmão) sabia o que estava acontecendo, e o porquê de tantas mudanças. Era o início dos anos 90, o plano Collor, o dinheiro que ainda não valia nada, uma inflação descontrolada, o mercado em frangalhos. Independente de tudo isso, nossa vida continuava, e dentro de casa éramos o que sempre fomos. Crianças se adaptam às mudanças, acham novas diversões, passam ilesas às preocupações da vida adulta, mesmo quando são atingidas vez ou outra por suas consequências. Obviamente, passamos a presenciar algumas coisas às quais ainda não havíamos tido contato: brigas aqui e ali, a tensão por não podermos fazer algum programa que fazíamos com frequência antes, a tristeza e a melancolia de um fim de ano sem presentes. Mesmo com tudo isso, éramos 4 à mesa, falando as besteiras de sempre, rindo das histórias absurdas do velho, discutindo escola, futebol e televisão, brincando com a minha mãe. Nunca precisamos de estupidez pra entender que nem sempre o sim aparece, e que o não é consequência da vida sem fábula. Aprendemos a ir atrás.

Assim, crescemos. Mais do que aumentar os dígitos na idade, entendemos o funcionamento da vida em que a gente se enquadra – sim, pois existem tantos outros mundos e realidades paralelos àquilo que somos que seria um absurdo afirmar que entendemos “o funcionamento da vida”. Ninguém entende, porque ninguém vive todos os desdobramentos de um prisma tão complexo em somente algumas décadas. Entendemos o contexto: quem somos, onde estamos, o que fomos e onde queremos chegar. E a partir daí, seguimos adiante – cada um pro seu lado, e do seu jeito. Meu pai deixou essa jornada já há quase 4 anos, e os remanescentes estão aqui: os irmãos casados, um deles com uma filha, e a mãe está descobrindo um novo universo ao qual ela agora pode realizar o quê, quando e como quiser.

Ninguém deve nada a ninguém, pois cada vida é de quem vive.

E por não dever – e viver, me sinto muito feliz e plenamente satisfeito com as escolhas que fiz – são as únicas que sou capaz de responder em algum momento. Um amor, nosso canto, nossas coisas. Nos encontramos no mesmo fundo, de poços diferentes, mas com o mesmo cheiro horrível e total ausência de luz. Subimos, nos conhecendo e nos apoiando, dividimos o mesmo colchão num quarto de apartamento alugado, juntamos os poucos que tínhamos, tapamos os ouvidos – improváveis, errados e incorretos que éramos aos olhos de quem gosta de escolher arroz com a vida dos outros – e chegamos aqui em cima, sem precisarmos nos apoiar nas costas de ninguém. O que se seguiu foi um resgate de valores que nos proporcionamos, e nos tornamos o que somos: olho no olho, sem censuras, construindo nossas próprias regras pra que essa coisa conjunta de “eu mais ela” que hoje a gente chama de família desse certo pros dois.

Tantas linhas pra reafirmar que a vida é curta demais pra gente pensar que o universo gira em torno da gente. Foi na total desesperança que encontrei uma saída. Uma saída que estava afundada em dores iguais ou piores que as minhas, ambas causadas pelos motivos às vezes desumanos, às vezes de pura crueldade. Encontrei na minha história pessoal, dos meus amigos, de gente que em nada se parecia comigo mas que cruzou o meu caminho em algum momento, e até em gente que eu detestava, o repertório necessário pra em momentos difíceis, parar por dois minutos e pensar em “como eu me livro dessa merda e saio desse buraco?”. Pra retomar a ideia do primeiro texto desse novo espaço, e ser inteligente e humilde o suficiente pra pensar nas ações antes de realizá-las; mais do que isso: pra que antes de emputecer e achar que o mundo vai contra quando algo não sai conforme o planejado, ter a decência de me perguntar se não fui eu o causador dos problemas, antes de sair por aí, apontando dedo pros outros. Aprendi, com todo esse mundo de gente que eu amei, odiei, machuquei, perdoei e me desculpei. Tive bons e maus exemplos, nos mesmos lugares. Continuarei a ter, a errar e a aprender. Nunca é suficiente, porque cada dia é uma novidade. E é assim pra todos nós.

Que cada um saiba o que é realmente importante pra si. Que se descubra em cima da sua própria história. Que não precise procurar nas respostas dos outros um mantra pros seus caminhos. Que seja autêntico pra reconhecer os próprios méritos, e inteligente o suficiente pra enxergar os próprios erros. Enxergando, que se corrija aquilo que machuca. Acima de tudo, que entenda que o que se vive aqui nesse mundo é uma sequência de momentos dedicados a quem se ama. É o que somos: agentes realizadores dos sonhos alheios. As lembranças serão sempre aquilo que deixamos nos sentidos – pro bem ou pro mal. Olhos nos olhos.

Assim sendo, amem direito.

Odiemos

(Não se desespere, meu amigo/minha amiga. Apesar de parecer, este não será um texto sobre futebol)

E eis que há pouco (passa das 2h da manhã) o São Paulo levou uma verdadeira sarrafada do Galo pela Libertadores, num 4×1 digno de valer o mais caro dos ingressos lá no Independência.

Instantaneamente a torcida tricolor, (justamente) emputecida com o resultado, invadiu as redes sociais – que imagino, sejam todas as possíveis, mas eu só tenho Facebook então vou me basear por ele – vociferando a plenos pulmões contra quem quisesse rir da desgraça alheia, e tripudiar o momento notoriamente vexatório. Não é a primeira vez que eu abordo esse assunto, portanto vale retomar o raciocínio após algum tempo, visto que nada mudou (no comportamento do ser humano – amigo sãopaulino, nada pessoal, e continue lendo para comprovar minha linha de raciocínio).

Torcer tornou-se um problema que vai muito além da paixão clubística. O cenário que se tem é de uma ode ao preconceito, disfarçada de paixão: ladrão, viado, pobre, burro, preto, velho, paraíba – a metralhadora giratória não tem mais a ver com a rivalidade pela rivalidade. Essa, sadia e saudável, tolerante e inteligente, foi exilada em algum canto civilizado do mundo. Os costumes foram banalizados e engarrafados, sendo hoje produto do marketing desse futebol moderno cada vez mais esterilizado. E os ataques são direcionados a algo que vai muito além da camisa – por sinal, a camisa é pretexto.

Começando pelo comportamento vendido (e comprado) pelas torcidas, onde tudo é proibido ante a descaracterização do modelo proposto ao torcedor/cidadão atual – que não pode levar bandeira, beber seu chopp, comprar um acarajé, xingar o juíz, rivalizar. Todos os movimentos são pensados e cada agremiação aplica e segue uma linha de comportamento. No caso do meu time, não podemos torcer contra, pois nos tornamos os “anti” (fruto de nossa própria criação, num claro exemplo Frankenstein de imbecilização de massas). Assim como tivemos o já conhecido “torcer pro São Paulo é uma grande moleza“, que colocava a equipe tricolor acima do bem e do mal – e por aí vai. Assim, vamos construindo uma geração de débeis mentais, que odeiam por odiar, e vomitam seus absurdos sem entender o porquê de algum dia aquela bandeira pela qual esbravejam ter se tornado grande – e a grandeza de uma equipe e sua torcida é um resultado histórico do embate e rivalidade com outros de mesma importância, ponto.

Se a gente olhar de fora, vai notar que o mesmo acontece além dos limites de campo, o tempo todo. Deixemos o futebol de lado (e eu adoro usá-lo como metáfora pro cotidiano – acostumem-se). Os tais embates religiosos, a afirmação convicta da culpa sem a prova, a mudança imediata de leis devido a determinado acontecimento, o populismo de capa de revista – tudo isso tem seguido um script um tanto óbvio, que sugere a sequência “impacto, discórdia, disseminação“. Em segundos, uma multidão toma partido em espalhar a foto do cara desaparecido, da mulher/perua/vaca que bateu no carro de fulano, do político corrupto do partido azul, do político corrupto do partido vermelho, do ciclista atropelado pelo taxista filho da puta. Um mundo caótico, de causas defendidas cegamente sem que sequer se tome partido de onde saiu aquilo tudo: o cara realmente desapareceu? A mulher/perua/vaca não teria tomado uma fechada de algum playboy? Partidarismo… sério mesmo, a essa altura do campeonato? O tal ciclista prestou atenção ao semáforo? Ninguém sabe, mas todo mundo opina e defende a causa com sangue e ódio a quem se opõe. Sem apontar culpados, o exercício aqui é o da hipótese. E ela sempre existe no plural.

Assim, vamos vivendo. Dando importância absurda a causas que não são nossas. O que nos caberia, pra falar bem a verdade, é simplesmente nos esforçarmos em sermos bons, e aprendermos com os contextos:

– Meu time perdeu? Aspirina e fones de ouvido pro dia seguinte…
– Meu time ganhou? Vou cornetar geral, dar risada e beber com todo mundo no fim de tarde!
– Vou ajudar sim – quem eu conheço, ou quem notoriamente precisa.
– Se eu não concordo, eu argumento. Berrar dá uma dor de garganta do cão.
– O porteiro merece atenção. A faxineira também. Tá todo mundo trabalhando.

Fazer parte daquilo que é seu, e saber que não se resolve nada reclamando, desmerecendo e humilhando quem não está na mesma estrada, na mesma direção ou com o mesmo pensamento que você. No dia em que a gente aprender a viver e conviver com as diferenças (sejam elas futebolísticas, religiosas, políticas, sexuais e o escambau), talvez possamos nos tornar aptos a discuti-las. Até lá, essa enxurrada de intolerância e ignorância sem fundamento vai infestar nossos cotidianos. E não será contra-atacando que a gente vai chegar a um lugar melhor. Sejamos sensatos (e bem-humorados, quando for o caso – e normalmente é).

A gente está se especializando em complicar tudo. Até futebol.

Levante e ande

Começar um novo espaço. Não significa de forma alguma esquecer aquilo que se viveu – e nesse caso, que se escreveu. Quando você saiu da 8ª série e foi pro primeiro colegial (não faço ideia como essa gradação de etapas se chama hoje em dia), o uniforme foi aposentado, o jeans foi autorizado, a sensação de sair de um número oito para um número um “de gente grande” te trazia exatamente esse mesmo sentimento: renova-se tudo, mas o ambiente permanece o mesmo – porém, sob uma nova ótica.

Acho que não desaprendi a escrever, mas como é difícil recomeçar. O hábito das palavras se perdeu nos minitextos do Facebook, e toda aquela correria de “fazer logo, e fazer muito”. No fim das contas, a gente acompanha a onda, sem notar quando e como é engolido por ela. Foi meu caso, e uma outra enorme série de fatores que me afastou disso tudo: o tempo cada vez mais curto, o casamento e suas (já nem tão) novas responsabilidades, um novo rumo pra minha vida (com menos, e melhores pessoas num cotidiano cada vez mais caseiro), a morte do meu pai e a impressão que pouco havia de importante a se descobrir na vida após uma perda tão difícil de se descrever pra quem nunca perdeu ninguém – ou pelo menos, alguém tão próximo. Foi tudo ao mesmo tempo, mesmo que esse tempo agregue uns 3 ou 4 anos. Ninguém é obrigado a ser racional o tempo todo, ainda mais quando a pessoa em questão sou eu, cujo cérebro sempre esteve submisso ao coração.

Porém, de uns meses pra cá, a Dé me trouxe um novo momento – mesmo que não diretamente, preciso culpar alguém por um processo tão complexo e tão tardio na minha vida, e acho que ela é a pessoa certa pro meu dedo entregar. Eram tempos difíceis (sempre são, nada é fácil), e num daqueles momentos de desespero sobre o que fazer com a própria vida, ela me entregou um livro. Logo pra mim, que nunca fui de ler. Não, não foi a Bíblia ou nenhum evangelho que o valha (essas coisas pegariam fogo nas minhas mãos, com toda a certeza, e eu tenho coceira sobre obras que falam de alguém que você nunca viu, escritas por alguém que você não sabe quem é – mas isso é papo pra outro texto). Existe uma lei universal, que diz que prevalece o bom senso quando um conselho vem da sua esposa ou da sua mãe, sendo que sua mãe não oferece risco de divórcio – portanto, pra quê subestimar? E lá fui eu, páginas adentro.

O tal livro falava sobre auto-engano, e entendi em duas ou três páginas que sim, aquilo era uma mensagem direta pra mim. Acabei mergulhando no menino, e em poucos dias terminei a leitura. Isso aconteceu no início do ano, e de lá pra cá amadureci algumas coisas que foram plantadas na minha cabeça – não com lavagem cerebral, mas com uma dose colossal de afeto. Poucas foram as pessoas a quem eu confidenciei a vontade de mudar certos aspectos da vida com os quais fiquei bastante conhecido. Não que tivesse vergonha de algo que fui, fiz ou pensei. O passado está escrito, e se a gente toma certa decisão em certo momento, é por acreditar que aquilo é o melhor pra gente. Mas os momentos mudam, e a gente precisa acompanhar as mudanças.

Junte-se a isso o fato de ter vivido nesses últimos anos esse redemoinho de emoções. Mudanças de família, amigos, trabalho, geografia. Era hora de encerrar (ou colocar de lado) uma etapa da vida, e partir pra outra. Mais do que novas perspectivas, novas atitudes. Obviamente, o ser humano que não se permite algumas cagadas, um ou outro dia de fúria, e a intepestividade que somente a loucura que a gente guarda enquanto bate o sol, certamente não está vivendo uma vida real. Acho que recomeçar significa também uma forma de fugir dessa urgência e obrigação que hoje em dia parecem cada vez mais presentes: de viver dias perfeitos, com pessoas perfeitas, de sabores e caráteres perfeitos, medindo palavras e tomando cuidado pra não pisar fora da linha. Esse universo virtual está esterelizando nossas personalidades, e hoje somos muito mais aquilo que parecemos, do que aquilo que de fato sentimos, transpiramos e evoluímos. Um erro de postura, do qual eu não quero fazer parte. Obviamente isso não se resolve inaugurando um blog, mas testar a paciência alheia com leituras de 5, 6, 10, 20 parágrafos, expondo assuntos (quaisquer que sejam) com o cuidado e os detalhes que eu tanto sinto falta hoje – mas que encontro em minhas novas leituras, sejam elas em livros ou em textos de colunistas replicados à exaustão no Facebook.

Primeiro, adquirir o gosto pela leitura, sem que gastar 15 minutos em frente ao computador ou abrindo um livro enquanto a porta do banheiro está fechada me causem uma crise de consciência. Depois, tentar trazer pra cá as coisas que eu quero falar. Sem obrigações políticas com ninguém, sem compromisso “com meus seguidores” (que expressão mais doentia, essa), e sem paranoias quanto à popularidade daquilo que se diz. Se em algum momento algumas linhas foram capazes de influenciar minha cabeça, a ponto de mudar minha postura perante os meus e meu mundo, e num universo onde tão pouco se faz pela reflexão embasada sobre qualquer que seja o assunto, talvez esteja nos faltando essa calma, de gastar algum tempo reforçando aquilo que se pensa, ou conhecendo outro ponto de vista, que gere uma discussão criteriosa – mesmo que ela seja sobre futebol, não importa. Exercitar a tolerância, e repensar a verdade como um resultado da comparação de diversas fontes é apenas um passo.

Mas um passo significa levantar da poltrona, e sair do lugar.