Gostaria de agradecer primeiramente…

Há alguns meses, tivemos uma ideia durante um papo na cozinha. Um papo mais profundo do que parecia naquele momento: “o que você REALMENTE gosta de fazer da vida?”. Não tinha nada a ver com o comercial do Pão de Açúcar… tinha, mas não tinha, não com o mesmo intuito marqueteiro. Mas encontrar a essência, essa coisa que te faz feliz de fato é um trabalhão- ainda mais se essa resposta te parecer nebulosa mesmo após algumas décadas.

Mas era, e a Dé declarou que viajar era o que a fazia feliz de fato.

Nenhuma novidade pra mim. Mas o que fazer com essa informação? Como transformar isso em resultado, e que resultado seria esse? Dinheiro? Contatos? Mais viagens? Um passatempo? Por sorte (e por competência – sim, em cima de tanta cumplicidade existe um trabalho de casal daqueles – e de comunicação, que facilita muito a coisa toda) a gente evoluiu o papo, e aos poucos esboçamos um projeto. Fizemos alguns testes, uma ou outra pesquisa, batemos muito papo, e a coisa foi tomando forma. Quando tínhamos barro suficiente, chegou a hora de botarmos a mão na massa e fazermos esse monte de informação virar alguma coisa de fato. E fizemos.

Botamos o vaso na vitrine hoje.

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Se há uma coisa que eu aprendi com a Dé é que existe hora pra tudo nessa vida – hora inclusive pra calar a boca e trabalhar. Durante essas últimas semanas foi esse o trabalho da vez – intercalado por outros, é verdade, mas era nossa prioridade. O Faniquito [www.faniquito.com.br] tomou forma, cor e vida – e agora está aí, pra todo mundo.

Minha maior alegria é ver a pequena fazendo de uma conversa na cozinha um novo momento – talvez um começo (sim, temos planos crescentes) de algo que tome vida própria logo mais. Coisa que ela me proporcionou quando apostou em mim, logo após eu levar uma rasteira. É hora de retribuir, sob circunstâncias bastante semelhantes.

Os primeiros passos já foram incríveis – nosso domingo foi surpreendente, acho que talvez resuma minimamente nossa empolgação. Mas esse texto grande, todo pessoal, é para agradecer o apoio de quem de uma forma ou outra contribuiu para que o papo virasse projeto, e o projeto virasse: Thiagão, Ju, Van, Japa, Isa, Aninha, Beta, Mel, Bibi, Carol, Magno, Marly, Nilce e Bassi, minha mãe, Yara, Talitão, Bruna, Fernando, certamente estou esquecendo de mais gente – e principalmente nessas últimas semanas o Glass, que deu uma força ABSURDA pra que o site saísse ainda esse ano. Obrigado mesmo molecada, pois às vezes a gente precisa de um empurrão pra coisa acontecer. Aconteceu. Aconteceu muito, e eu sou grato demais a todos vocês.

Amanhã faço a apresentação pra valer. Hoje é dia de aproveitar a empolgação e curtir o parto.

Quer que eu desenhe…?

Fim de ano, época de apartheid. Depois do ocorrido (e relatado) no texto anterior, algumas pessoas mudaram radicalmente seu modo de agir comigo. Umas próximas, outras nem tanto. Definitivamente ter um determinado ponto de vista e/ou opinião formada neste momento em especial incomoda (e muito) os que “não estão contigo”. Não dou a mínima – diz a sabedoria popular (sim, ela existe) que a gente só deve discutir com quem tem capacidade de argumentação – coisa que notoriamente alguns agora identificados não têm.

Então tomei uma decisão. Duas, na verdade. A primeira é que durante algum bom tempo me expressarei publicamente sobre questões sérias como um verdadeiro idiota abobado. Melhor ainda: não me expressarei coisa nenhuma. Que se danem os que estão sedentos por algum sentimento de vingança, ou mesmo os ufanistas que a partir de agora estarão cegos por uma razão que não existe. Enquanto as pessoas se sentirem no direito de esfregarem verdades pessoais na cara alheia, eu não farei parte do circo. Me deu bem no saco esse clima de torcida organizada. Não entro mais em guerra. Não perco tempo da minha vida discutindo com quem não me conhece (ou pensa que conhece). Mais: está cada vez mais fácil identificar os babacas – e ignorá-los passa a ser um dever, quase uma demonstração de sabedoria.

Porém, isso é muito cômodo. Então, a tal segunda decisão: vou usar aquilo que tenho de melhor pra tentar fazer algum bem pras pessoas – todas elas. Na minha cabeça, a única forma de nossa espécie evoluir de fato se dá numa equação de três coisas: berço, respeito e educação. As duas primeiras infelizmente não estão ao meu alcance, mas posso dar uma força na terceira. Do meu jeito. Mal não vai fazer se eu tentar, não é mesmo?

Pra fechar o texto (e justificar o que eu farei daqui a alguns dias): na minha opinião, existe uma avalanche de auto-engano acontecendo. Uma caça incessante por “culpados” – uma apontação desenfreada de dedos: “pra você que defende o bolsa-miséria”, “pra você que não liga pra falta d’água de dentro do seu condomínio de luxo”, “pra você que acha bonito passear abraçando outro macho”, “pra você, coxinha que pára seu SUV em fila dupla”, “pra você que defende vagabundo”, “pra você que acha que Miami é a solução”, “pra você que vota em corrupto”. As pessoas fazem o que fazem por motivos próprios (que a gente não entende, porque não dá pra sacar quem é esse cara só olhando perfil e status de facebook – a conta é simples). Porém, não há preocupação em dialogar. Não há vontade de refletir, de apontar os problemas e justificá-los se for o caso, e muito menos de mudar de opinião. Está fácil demais culpar o cara que não veste a mesma roupa, não usa as mesmas cores, não acredita nas mesma coisas, que não tem as mesmas necessidades e preocupações – e que por tudo isso, tem outro ponto de vista. Certo? Errado? Isso é outro problema. É na diversidade que a gente evolui. Sim: as unanimidades são burras, pois não contestam.

Então, antes de apontar o dedo e virar o nariz pro seu ex-querido, pense bem o quão justo você está sendo. Contextos sociais envolvem um todo, e não somente a gente – e por mais absurdo que pareça, tem gente por aí que ainda prefere pensar o todo ao umbigo. Vou tentar fazer algo de bom por aqui – esse é meu compromisso, com o todo. Espero que você esteja fazendo algo de bom por aí também, ao invés de continuar alimentando a cultura do ódio.

E uma úlcera, de tabela. Porque intolerância tem efeito colateral.

Estamos sozinhos

Eu confesso que ainda estou assustado com o que aconteceu domingo. E vou contar uma breve história pessoal, portanto aos que não curtem leituras um pouco mais extensas, sugiro a desistência aqui mesmo.

De 1984 a 1996 estudei num único colégio. Ensino particular, Jardim Aeroporto, frequentada somente por crianças brancas ou orientais, classe média-alta. Não havia um negro sequer em todo o curso, se bem me lembro. E durante todo esse período, não foram poucas as piadas que a gente contava e ouvia – obviamente, também não eram poupados gays, portugueses (dos quais tenho ascendência), japoneses, gordos, nordestinos, loiras e afins. Temos mais de 30, sabemos que época é essa, e o quão comum era se divertir à custa dos outros. Não era culpa do colégio, pois chegando em casa quantas não foram as vezes que meu pai fazia piada sobre os mesmos temas, variando as histórias, e ao final a gente rachava de rir.

Veio o plano Collor, a economia rachou, e no meio da década de 90 tive que mudar de escola. Fui estudar no Senai. Concurso e o escambau, entrei no curso de Artes Gráficas. Uma turma com mais de 70 pessoas. Não tinha um puto no bolso, estudava na Bresser (Zona Leste de SP), morando no Taboão (zona Sul/Oeste), período integral. Ônibus às 4h50, marmita na mala, passei a dividir marmiteiro, mesa e bandeijão com uma galera que em nada lembrava o povo do meu ex-colégio: rico, pobre, gente que morava em outra cidade, gordo, magro, preto, branco, amarelo, órfão, fumante, playboy. E eu, que tomei um choque ali por não saber lidar com as pessoas que não fizeram parte da bolha em que cresci e vivi até então. Foi bom, eu aprendi muita coisa. A turma em 8 semestres encolheu sensivelmente. Existiam caras muito bons, outros nem tanto. Gente que se dava bem dentro da sala de aula, outros que eram mestres na oficina. A gente precisava um do outro no fim das contas. Dei monitoria de matemática, ajudava a galera a fazer pasta de desenho técnico… era outra vida, muito mais suada e cansativa. Mas era um puta de um tesão.

A imagem da minha infância foi ficando turva. Fosse pelo intervalo crescente de tempo, fosse por uma sensação de que aquele cara que eu havia me tornado em nada correspondia ao moleque tímido, inseguro, chorão e mimado que eu era. E havia a vergonha, de muitas coisas: ter preferido escrever a falar com a menina da sala de aula, nunca ter batido uma bola na pracinha em frente de casa, e sim, ter feito e pensado menos dos outros. Aprendi que o certo era fechar o vidro quando o moleque vem vender drops no semáforo, que quando visse um cara na calçada o mais seguro era mudar de lado, e que lugar de nordestino era levantando laje. Aprendi a chamar os caras de bóia-fria, de cabeça chata, de paraíba.

Pois agora eu tinha amigos nordestinos. Viajaria no final do curso pra Porto Seguro. Dali em diante meu mundo abriu. Conheci gente de tudo o que foi canto – pessoal ou virtualmente, e ocasionalmente com um puxando o outro, vieram outras turmas. Tive meus primeiros amigos homossexuais – meninos e meninas. Fiz muita merda. Fiz muita coisa boa também. E em determinado momento eu olhei pra trás.

Assim como fiz ontem.

E senti muita vergonha de quem um dia eu fui. De ter achado graça do ser humano ser o que é. De ter me sentido superior a um alguém qualquer, fosse qual fosse o momento. Até pouco tempo atrás eu chamava sãopaulino de bambi, de “aquela raça”. Que coisa mais imbecil, ser alguém que se diverte fodendo os outros. Ao mesmo tempo, vi vários desses amigos serem discriminados uma, duas, dez vezes. Alguns não podiam o que eu podia – se expressar livremente em público, amar sem ser julgado – pois “a sociedade não aceita”.

“Quem somos?”, essa sociedade… Quem somos nós, que não somos capazes de levar a sério episódios sérios, absurdos, covardes da História de nós mesmos? Quem é essa gente que ainda acha bonito apontar o dedo e diminuir o cara do lado por ele ter uma estrela ou uma cruz penduradas no pescoço? Que pensa que trabalha mais do que o cara que não fala direito o Português, que não tem emprego, que ganha uma miséria do jeito que dá, e que assim como eu e você tem fome, sede, precisa dormir e precisa morar pra não morrer? Quem somos nós pra saber a merda que fulano passou pra ser o que é – e talvez seja o máximo que ela consiga, pois nós mesmos pisamos na cabeça dele pra conseguir subir na vida? Qual o nome do seu porteiro? Da sua faxineira? Será que eles tiveram uma infância tão segura, feliz e tranquila como a nossa?

Não. Você me lê pela internet. Nós somos a exceção.

Então, crescer achando que quem é diferente da gente automaticamente é motivo de piada, de desdém ou de dó… bem, isso é colocar como cláusula pétrea que não somos capazes de pensar além da nossa bolha. É esquecer que viver em sociedade é sim entender a necessidade do outro, de dar bom dia pro cara no semáforo, pro vizinho de banco na padaria, de ser um pouco melhor todo dia. Um dia me botaram uma camisa do São Paulo quando era criança. Mais pra frente, vi que aquilo era errado, procurei minhas cores e fui feliz com meus novos (e velhos) amigos. Não é possível que a gente continue aceitando, calando e empurrando com a barriga nosso estado de letargia com aquilo que não somos, não temos ou não sabemos. Todos (eu disse TODOS) os meus amigos – próximos ou não, minha família, conhecidos e desconhecidos que de alguma forma eu tenho contato são capazes de ser algo melhor. São capazes de pensar com responsabilidade antes de abrir a boca ou mexer os dedos.

Sei que sonhei muito em um dia conhecer um lugar onde o mundo e as pessoas mudaram depois de determinado acontecimento, e tive oportunidade de fazê-lo esse ano. Sou um privilegiado, mais exceção ainda do que antes. Mas o que aprendi por lá todos nós sabemos, ou pelo menos temos uma ideia muito clara a respeito.

Portanto, e fechando a história (e essa reflexão enorme): não existe justificativa, contexto ou o caralho que seja capaz de justificar um sentimento, um lampejo ou um momento estúpido como o que vivemos ontem. Estávamos há pouquíssimo tempo falando de sentimento patriótico, de abraçar a nação, essas coisas que nunca fizemos porque não fomos capazes de nos unir por um bem comum. Ontem soubemos o porquê disso. Então, ao invés de culpar quem se mexeu de alguma forma – indo pra urna, pra rua ou pra onde fosse, vamos nos atentar àquilo que não estamos fazendo direito. E enquanto esse desrespeito, esse sentimento absurdo de superioridade permear de alguma forma a nossa cabeça, não há cor, nome ou região que resolva: estaremos todos no inferno, e sozinhos.

E solidão é exatamente meu sentimento hoje.

Teve Copa, e a gente nela

Calhou da gente assistir à Copa.

Oportunidade de comprar ingressos sem dor de cabeça e por um valor acessível para um evento desse porte, possibilidade de assistir jogos legais, e um bônus: conhecer a nova casa do meu time. Topamos, compramos e escolhemos o jogo – o campeão do grupo de Argentina e Nigéria contra o vice do grupo de França, Suíça e Equador. Por pouco o tal jogo não virou Nigéria x Equador, mas acabou dando a lógica (uma raridade nessa Copa), e fomos assistir aos Hermanos contra os Chocolates.

Antes, um esclarecimento necessário: vivem me perguntando o porquê de eu torcer pra Argentina, já que eles são nojentos, folgados, babacas, etc. A resposta é mais fácil do que se imagina: PORQUE SIM. Na Copa de 90, eu apanhei do meu pai por ter chorado após o gol do Caniggia. A única vez em que ele me bateu na vida. “Não é pra chorar por esse tipo de coisa, é estupidez”, me disse o cara que anos depois, com um comportamento de torcedor digno de um débil mental, me ensinou a odiar o São Paulo FC – o que por si só já justificaria uma reviravolta emocional a fins de provocação, e torcer pros hermanos seria uma resposta à altura ao ato de estupidez DELE. Mas não bastando, eu e a Dé já viajamos pra Argentina por duas oportunidades. Tenho amigos argentinos. Eu amo aquele lugar, por tantos motivos que mal caberiam nesse texto. Eu acredito na força de um continente latino. Eu acho qualquer agressão não-justificada um abuso – o mesmo abuso que eu acabei sofrendo por odiar tanto aqueles caras sem sequer saber o motivo, e que me fez sentir tanta tristeza após um gol. Então sim, eu acho essa rixa uma coisa cretina.

Felizes, partimos aqui de casa logo cedo.

Simulação das nossas vestimentas.

Simulação das nossas vestimentas.

Deixamos o carro próximo ao metrô Butantã, onde o cara do estacionamento – nos vendo devidamente trajados de azul e branco – sentenciou: “tão indo pro Itaquerão né? O jogo é às 13h… vocês tão de volta umas 17h, no mínimo. Eu moro praquele lado e sei como é que é”. Já na estação, a fila pra comprar o bilhete já trazia uma atmosfera muito nova: apesar da tal fila ser enorme, praticamente todo mundo sorrindo. Camisas diferentes, Argentina, Suíça, Brasil, Corinthians, Palmeiras, México, Venezuela (!), gente pintada, gente fantasiada. Aquilo era simplesmente legal. A Dé vira pra mim e fala “eu não manjo quase nada de futebol, mas se isso aqui é Copa, é muito divertido”. Era mesmo. Na minha cabeça veio um pensamento, de que aquela era a coisa mais próxima da utopia chamada paz mundial. Seguimos adiante.

E ao entrar no metrô, começaram os cantos, que nos acompanharam até Itaquera… “Brasil, decime qué se siente / tener en casa tu papá…”. As pessoas no metrô tiravam foto, filmavam, davam risada daquele povo falando alto e rápido aquele espanhol que tanto irrita ao Galvão. Alguns ainda perdidos, pediam informação – eu dei algumas no “meu espanhol fluente” inclusive, e matei um pouco a saudade de lá. No percurso pela linha vermelha do metrô, juntaram-se aos argentinos alguns corinthianos. Sim, porque pra gente, existia esse outro lado: conhecer o estádio que daqui em diante a gente vai chamar de casa. Uma ou outra testemunha suíça, alguns estrangeiros globais, era um trem absolutamente internacional. E divertido, muito divertido. Descemos em Artur Alvim.

Nosso setor no estádio era o Oeste. Dali em diante, andar até nosso destino. No caminho, fomos saudados pela organização (que foi extremamente competente, vale registrar), pelas pessoas na rua (como se fôssemos maratonistas), por um grupo de crentes (e seus cartazes de “Jesus está voltando”)… enfim, por todo mundo. Me vinham à cabeça as palavras do Thiagão duas semanas antes dessa bagunça toda começar:

“Só mais 14 dias… está chegando a hora de ver muito futebol e fazer novos amigos independente de nacionalidade e de qual é o próximo jogo. Aproveitem que vai ser do cacete, e não vai ter outra tão cedo.”

Ele estava certo.

Em pouco mais de dez minutos, chegamos. E eu confesso que devo ter aberto o sorriso mais rasgado ao ver de perto o Itaquerão. Me emocionei mesmo, de dar uma segurada no choro e tremer as pernas. A Copa ao vivo, ali em casa. Eu precisava de uma foto, a Dé tirou, e eu estou com uma cara de idiota feliz da qual muito me orgulho. “Welcome to Arena Corinthians! Bienvenidos a Arena Corinthians”. Sim, Corinthians – e azar de quem não fosse. A Fifa podia dar o nome que quisesse àquele lugar: ele é nosso. E que estádio lindo, Deus do céu… dos acessos à chegada no campo, tudo é muito amplo, muito bonito. É estranho deixar o Pacaembu por um lugar tão diferente, mas aquilo vai ganhar uma alma logo mais que vai sim deixar o lugar perfeito. É inevitável.

Eu, com cara de pateta e todo felizão.

Eu, com cara de pateta e todo felizão.

Lá dentro, a organização era impecável: das indicações aos pontos de venda, o pessoal de apoio, limpeza, tudo. “Você não tá sentindo como se fosse turista?”, a Dé me perguntou. Sim, eu estava. Aquilo era uma coisa diferente de tudo. Entramos e pouco depois já tínhamos uma visão total do gramado. Um céu azul, um calor bem razoável, e tanta gente naquela mistura que a gente só via na TV… era muito, era incrível mesmo.

Ainda faltava uma hora e meia pro jogo, então resolvemos passear pelos arredores. Os stands dos patrocinadores possuíam trocentas atrações – um toque que a Fê nos deu, e fomos conferir. Um clima total de balada, uma galera que notoriamente não era a mesma dos “jogos regulares”, mas a Copa é um ambiente totalmente diferente, e era sim tudo muito legal. Mas era gente demais (mesmo), e numa avaliação rápida, nos pareceu boa ideia irmos pros nossos lugares e esperar por lá o início do jogo.

Cheguei Copa!

Cheguei Copa!

De novo, nenhuma dor de cabeça. Tudo muito organizado – chegamos, sentamos e ficamos na expectativa. Uma multidão de argentinos ao redor, o clima seria o mesmo do metrô – e que bom. Havia uma tentativa da torcida da Suíça de sobressair, e os brasileiros em grande maioria apoiavam os europeus. Mas a torcida azul gritava mais alto, e cantava mais bonito. A nossa tensão nem se comparava à deles, que não erguem a taça há 28 anos – então a coisa era apaixonada mesmo. As equipes saem de campo após o aquecimento, e dez minutos depois toca a musiquinha da Fifa. E a coisa vai.

Selfie, porque tá na moda. Mas a gente tira desde o namoro mesmo...

Selfie, porque tá na moda. Mas a gente tira desde o namoro mesmo…

O jogo vocês viram, eu não preciso comentar. A gente viu tudo muito bem, de trás do gol que fica ao lado direito da TV. Os tais argentinos cantavam, calavam e torciam como gente grande. Obviamente haviam alguns alienígenas ali com a gente (as meninas que usavam um falso nacionalismo pra dar em cima dos hermanos, um casal na nossa frente mais preocupado em buscar cerveja do que assistir ao jogo, um pessoal gritando “senta” a cada levantada da torcida nos ataques… essas coisas de quem acha que está no cinema ou no sofá de casa). Mas nada disso atrapalhou a gente – só o gol que não saía. No tempo normal, e durante quase toda a prorrogação.

Quase.

Câmera mais que exclusiva.

Câmera mais que exclusiva.

Ele existe mesmo. E joga. Muito.

Ele existe mesmo. E joga. Muito.

Acabou 0x0. Todo mundo procurando vida pra mais meia hora.

Acabou 0x0. Todo mundo procurando vida pra mais meia hora.

Pouco antes daquela zona de goleiro dando bicicleta e bola na trave.

Pouco antes daquela zona de goleiro dando bicicleta e bola na trave.

E como foi legal ver o Messi fazer magia no estádio do Corinthians. O gol do di María fez justiça não à seleção, mas à Copa. Disse a Vanessa que “não faria sentido a Suíça passar”. É verdade… os caras ao nosso redor choravam copiosamente, um desabafo que há muito eu não vejo por aqui em Copas – mas que vi muito de perto, dentro minha própria torcida, com a conquista da Libertadores de 2012. Eles estão desesperados, e aquela bola na trave no último minuto quase matou metade do coração. Acabou. A gente tinha visto a Copa ao vivo. Era surreal.

O fenômeno admirando essa Copa, que devia estar dando vergonha, mas tá é muito boa.

O fenômeno admirando essa Copa, que devia estar dando vergonha, mas tá é muito boa.

Porque todo mundo se cumprimentava… todo mundo saía numa boa, camisas vermelhas, azuis e amarelas. Um mundo diferente esse (que eu DUVIDO que aconteceria por exemplo num Brasil x Argentina, com ânimos e rivalidade aflorados de fato). Ainda encontramos o Casper (que eu não via há 15 anos), e foi bom dividir um pouco de tanta alegria com quem havia sentido coisa parecida por outro ângulo no mesmo lugar. Deu tudo muito certo, foi tudo muito bom. A volta, igual à ida, foi em meio a um corredor cercado por moradores e curiosos, que queriam a todo custo uma lembrança do jogo que não foram… uma histeria, um treco totalmente louco. No trem, os argentinos aliviados, e um senhor corinthiano batendo papo comigo fecharam a tampa da panela. Voltamos ao estacionamento às 17h40 – o cara mora lá mesmo, e sabe das coisas. Safadão.

Eu e o Casper, pouco antes de pegar aqueles palmeirenses ali atrás na porrada.

Eu e o Casper, pouco antes de pegar aqueles palmeirenses ali atrás na porrada.

E se existe alguma coisa a mais que possa ser dita, é que no fim das contas não importava a seleção (mas ser a Argentina foi bom, pois a torcida contagiava): a real é que a Copa é uma experiência. As pessoas estão diferentes, o clima é incrível, e a sensação é de viver o impossível. Aquela coisa que acontece dentro da TV de 4 em 4 anos, e que faz o mundo parar, é de verdade. Ter feito parte dela ainda me parece um sonho, e a cada dia eu tenho uma convicção maior de que essa Copa devia ser proibida de acabar. De qualquer forma, da minha vida ela não sai mais.

Os braços abertos

Nesse final de semana São Paulo teve mais uma Virada Cultural, e a Neguinha* foi tocar por lá com o seu Samba de Bolso no evento. Eu nem sou chegado a samba, não preciso nem dizer. Mas ela canta bem demais, a música é boa, e a amizade transcende esses detalhes. Fomos. Chegando lá no centrão, paramos o carro por perto, e fomos nos informar com os policiais da redondeza onde ficava o tal “Palco Braços Abertos”.

– “É ali atrás, na Cracolândia”. – me respondeu a solícita e sorridente PM.

Bateu um frio na barriga. Óbvio, porque a gente – por mais distante que esteja, SABE o que é a Cracolândia**. Fomos andando, e chegamos ao pequeno palco, montado quase em cima da calçada de uma rua, que quando atravessada dava diretamente no bloco onde “os moradores do lugar” ficam zanzando. A gente realmente não sabia o que fazer. Éramos poucos ali, talvez uns 20 ou 30 visitantes, e o samba começando a rolar com a Neguinha toda sorridente e mais branca que geladeira (porque ela é assim, branquinha-branquinha mesmo), cantando sobre alegria e esperança.

Era muita informação. Eu confesso que por alguns minutos me perdi, pra tentar entender o que estava acontecendo. O frio na barriga virou coração apertado.

Esqueçam problemas técnicos, som pipocando, microfonia. Ao olhar pra trás, o que a gente via era um bloco de pessoas espremidas num quarteirão, sem rumo (literalmente, o “zanzar” é o verbo que melhor definia seu movimento). Alguns ficavam um pouco distantes da gente – éramos “as visitas”, num território que em nada conhecíamos – enquanto outros entraram no samba e foram ali pra frente, dançar e curtir aquele momento diferente. Me parecia um absurdo, até um certo exibicionismo dos responsáveis pela Virada “enfiar ali um palco”. Eu não entendia aquilo, mas nesse momento você entra em conflito com sua própria ignorância. Aquilo não é uma prisão, é uma rua. Aquelas pessoas são pessoas, como você, que vieram de uma mãe, de um pai, e que seguiram um curso infeliz demais, que desencadeou naquela coisa que eu não conseguia definir o que era. E elas estavam ali, pacíficas e alienadas, algumas completamente desconectadas daquele momento, outras se deixando divertir em cada música. Elas estavam ali porque elas não fazem parte de qualquer outro contexto – fosse por elas, fosse por aqueles que eram suas famílias, companheiros, amigos. Elas estão perdidas, e reunidas num lugar que a gente chama de Cracolândia, mas que é uma rua. Uma rua igual a tantas outras, em que tanta gente vive por aí, seja pelo motivo que for. E elas – ou algumas várias delas – estavam dançando. Elas pareciam um pouco mais felizes do quando a gente as vê na TV, com a cara pixelada e voz distorcida.

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Não sei se existe contexto, pois a cidade é a mesma, e achar que elas, ou o palco, ou a prefeitura, ou quem fosse “estava fora de contexto” foi minha primeira briga pessoal comigo mesmo. Perguntei se a Dé queria ir embora, e ela não queria, E nem eu queria, e cacete, não havia motivo pra ir embora dali, porque a realidade pode ser feia, cheirar mal, ser incompreensível, mas cacete, quanto disso também não é culpa minha por justamente me excluir de saber o que fazer com essas pessoas (e com todas as outras, quando a gente fala “da nossa comunidade“, “da nossa cidade“, “do nosso país“). O que é de fato esse “nosso“? Nosso é “aquilo que é de todos nós“, e as pessoas não se diferenciam quando falamos de todos, pois uma daquelas moças estava tentando ensinar a um de nós, “visitantes”, como sambar. Ali, na minha frente. Não havia nada de errado na alegria de ambas, por mais distantes que fossem as suas realidades. E eram MUITO distantes, acredite.

Foi aproximadamente uma hora de show. As músicas foram muito bem escolhidas, pra variar – a banda é ótima, a Neguinha nunca escolheria parceiros ruins com o talento que ela tem. Mas foi acima de tudo uma experiência aquilo tudo, que eu ainda não consigo entender. Ela me contou depois do show que aquilo faz parte de um projeto do governo que não fica só na Virada Cultural, mas cuja amplitude é bem maior. Eu fiquei feliz, preciso entender do quê se trata pra tentar limpar um pouco minha mente e talvez cultivar um pouco mais de esperança. É daquelas iniciativas que não geram votos, porque não nos atingem diretamente – afinal, se você está lendo esse texto de um blog, possivelmente sua vida não é baseada em crack – não existe wi-fi na Cracolândia. Mas são mais importantes do que novas estações de metrô, estádios de futebol, centros culturais. Não existe melhoria na mobilidade urbana, quando se tropeça em gente pelas sarjetas. Acho que as prioridades existem sim, mas antes de qualquer uma está a dignidade do ser humano (por mais difícil que seja pra gente enxergar isso – seja quando o trânsito pára, quando um aumento é anunciado, entre tantos abusos que tanto incomodam a gente antes desse negócio todo).

Mas lembro bem de todos os dias ler gente defendendo partido A ou B como se fosse partida de futebol. De descerem o pau em projetos que a gente mal sabe o que propõem. Eu não sei se o tal “Braços Abertos” já foi um dia chamado de “Bolsa Crack” ou coisa do tipo, mas acho que sim. Se foi, eu digo: que seja. Eu não sei se é o jeito certo, o jeito errado, mas alguém está fazendo alguma coisa. Aquelas pessoas precisam de ajuda. Elas precisam se sentir humanas, porque ninguém tem culpa de escolher o caminho errado. Eu já perdi gente muito próxima por causa de droga. Eu perdi um pai que priorizou o vício à própria saúde. Quem sou eu pra comparar minhas pontuais experiências de vida à realidade COTIDIANA daqueles adultos, crianças, velhinhos? As pessoas erram. Eu errei julgando aquelas pessoas e aquele lugar, que até agora não entendo como funciona e de que forma – então sim, eu também preciso de ajuda – uma ajuda que eu sou capaz de alcançar ME educando.

Eu não sei qual o tratamento que um dependente precisa. Eu acho que o mundo não precisa de manicômios, como a Beta fez questão de afirmar durante toda a semana num movimento que rolou no Rio durante esse fim de semana. Acho que um lugar chamado Cracolândia não devia existir sob nenhum contexto. E mais do que tudo: eu admito que sou (e sempre serei) muito ignorante, e que julgar qualquer coisa ou pessoa sem o mínimo de conhecimento é de uma leviandade absurda. É desumano. É burro. E eu sou tudo isso, quando faço e insisto numa posição que eu tive a felicidade de abrir mão ao ter um mínimo e distante contato com uma das coisas das quais tinha medo – e que a partir de agora, farão parte de um contexto que eu espero não mais esquecer. A gente é naturalmente ignorante, e por isso mesmo, toda informação sempre será pouca. Fechar juízo é desistir de pensar, e por muito tempo eu fui assim. Não sou (e não serei) mais.

Sei que vi gente que teve um mínimo de felicidade naquele intervalinho de tempo. Gente que pôde ser tão feliz quanto eu, mas que após a hora seguinte tomou pedrada de granizo na cabeça, enquanto eu estava abrigado no meu apartamento quentinho.

E isso não é um pensamento reconfortante, mas MUITO perturbador.

* Queria agradecer publicamente a você e a toda a tua banda, que me proporcionaram uma das experiências mais intensas que tive na vida. E espero que ela renda frutos na minha cabeça pra um futuro nem um pouco distante. Num mundo tão impessoal, eu preciso sim agradecer a quem é capaz de reumanizar as pessoas – e que abençoados vocês, que trouxeram um pouco de vida pra tanta gente ontem. Foi muito bonito mesmo.

** A Cracolândia é um lugar localizado entre a Alameda Dino Bueno e Rua Helvétia, no centrão, perto da Estação Júlio Prestes. E apesar do nome altamente pejorativo, é isso mesmo: um lugar onde ficam os dependentes de crack. Eu preferi usar o termo pra deixar claro onde e como estão as coisas ali, pois acho igualmente babaca você chamar um mendigo de morador de rua. É aliviar uma expressão que te dói o ouvido, por você, eu e todos nós termos responsabilidade direta em continuarmos marginalizando essas pessoas.

4

Eu lembro bem da noite anterior. Da gente se encontrando na casa da sogra, pra em seguida dar uma olhada no salão de festas do condomínio, onde ocorreria a “cerimônia” (sim, entre aspas mesmo… a gente fez um negocinho tão intimista que chamar de cerimônia é quase promover o evento). Aquele teto preto, aquelas poltronas arregaçadas, e a gente saiu de lá fazendo votos de que tudo daria certo no dia seguinte – mas ambos duvidando daquilo que diziam – aparentemente concordávamos implicitamente que nosso casamento tinha tudo pra dar errado. Bom, a “cerimônia” pelo menos.

Mas aconteceu, mesmo assim. E no dia seguinte – há exatos quatro anos do dia de hoje – chovia copiosamente. Eu, mais preocupado que tudo desse certo do que com o que de fato aconteceria, lembro bem de estar uma pilha de nervos. Lembro de agradecer copiosamente ao milagre que a Agnes operou, ao transformar aquele salão tenebroso em algo agradável pra uma manhã cinzenta de sábado; de ficar feliz com os amigos ali tão cedo; do bolo derrapar mas não cair, quando da chegada da minha mãe ao salão; das coisas darem certo, mesmo dando errado; e da pequena subir a escada tão linda e sorridente naquele dia.

Lembro bem de ter beijado a noiva antes de começarem qualquer coisa; de ter sorrido sem medo com as brincadeiras do bispo; de ter tentado à exaustão me controlar pra não chorar durante a cerimônia, e de ter falhado miseravelmente nessa missão, ao ouvir as palavras que a Dé escreveu pra mim; de achar que poderia ter escrito votos melhores e mais marcantes, mas saber que a exaustão daquele momento minara qualquer tipo de criatividade que eu pudesse ter em dias tão conturbados e difíceis; de ter errado a mão da aliança (e ter sabido rir da minha própria presepada); de ter visto as mães e a cunhada chorando; de ter cumprimentado muita gente, mas não lembrar de nada especificamente, pois era gente demais, coração demais, coisa demais e aquilo parecia difícil pra quem estava tão cansado. Lembro bem do cansaço, esse que acompanhou a gente nesse verdadeiro rally que foi conciliar festas (sim, sempre lembrando que foram duas, e não só uma), compra de apartamento, lista de casamento, mudança de endereço, greve bancária e emoções à flor da pele.

Lembro de não ter imaginado como isso tudo seria. Lembro de hoje a gente fazer 4 anos de mesmo teto, mesma cama, mesma pia, mesmo controle remoto, mesmo varal. A gente nunca se esforçou pra fazer dar certo, porque simplesmente deu. Hoje não tem nada programado, mas será especial como sempre. Eu não lembro bem como era a vida sem você do meu lado, e acho que é bem por aí mesmo… a gente deixa pra trás o que dá errado, pra se preocupar dali em diante com o que dá certo.

A gente deu, e oliamo. Felizes e múltiplos 4 anos, pequenininha.

Respire fundo, e Benalet

Nas duas vezes que estivemos em Buenos Aires, pegamos táxi por algumas vezes. Em ambas as viagens, além da abordagem clássica (são brasileiros? o que vieram fazer por aqui? estão gostando?, e toda aquela milonga deliciosa de sempre), os motoristas falaram sobre política. Na primeira viagem, em 2008, sobre o governo Lula; e no início desse ano, sobre a “Lulita” (o apelido da Dilma pros hermanos). Conversamos dentro daquilo que sabíamos, e nessas horas ficou claro que sabíamos muito pouco – principalmente comparando nosso conhecimento à fluidez dos argentinos no assunto.

mafalda

Esse povo de cabelos engraçados, futebol vistoso e ótimas carnes e doce de leite já vai pra rua faz muito tempo. Tem dois heróis nacionais declarados: Evita Perón (dispensa maiores apresentações), e Domingo Sarmiento. Ambos presidentes, o segundo – e menos conhecido por aqui – se destacou pelos incentivos à educação e cultura no país. Não por coincidência, desde seu governo houve uma proliferação de livrarias pelo país. Os argentinos continuam apaixonados por futebol, mas passam seu tempo livre em áreas públicas enormes, cultivando os bons hábitos do convívio em sociedade, leituras, esportes e um lazer de qualidade. Não por acaso, conversar com a maioria dos argentinos é uma experiência que acaba com qualquer preconceito babaca ou rixa estúpida surgida com a tal rivalidade futebolística.

Houve um estalo, e com a coragem de alguém, tudo começou a mudar. Lá atrás.

Os atos públicos que estão acontecendo por aqui têm despertado opiniões das mais diversas. Eu, que tanto falei sobre por aqui na semana passada, resolvi botar o pé pra fora de casa e segunda-feira tentamos entender a coisa toda de dentro. E vimos de tudo, mesmo. Desde então o que se discute é se estamos ou não “banalizando um movimento autêntico”, ou se isso tudo não é “fogo de palha”. Ficou mais fácil formar uma opinião depois de participar, essa é uma certeza que tenho.

E acho que o fato de domingo à noite discutirmos, em uma mesa de sete pessoas, a tal política vista aos olhos de cada um (e olhos tão diferentes que não foram poucas as surpresas com as opiniões de cada um) tornou-se assunto: superficial, viciado, bandeirista, não importa. Discutimos. Assim como o facebook, que vem sendo dominado pelo assunto desde semana passada, sem pausas pra Copa das Confederações ou pro Dia Nacional da Garrafa Térmica. Estamos discutindo, cada um do seu jeito: sem buscar fontes, passando adiante informações toscas (às vezes levianas), vídeos descontextualizados, pedidos de justiça vazia. É um verdadeiro tiroteio sem alvo. Os poucos realmente politizados e com conhecimento desmerecem as “tentativas vazias” da maioria. E você pode pensar: que merda isso… como a gente está longe de saber o que quer, e mais ainda: como lutar por isso?

E aí eu discordo.

Conversando com uma amiga hoje, a conclusão que eu tiro é que, mais importante do que sabermos onde chegar, é termos saído da inércia. Uma molecada com energia, e que ainda não tinha visto seu próprio país na rua, viu e gostou. Muitos dos céticos (incluo-me) tiveram uma fagulha de esperança em tudo o que vem acontecendo. E quanto às discussões… eu nunca vi uma criança sair do engatinhar e começar a andar sem tropeçar, cair e se machucar. Mas é um caminho sem volta – após a primeira tentativa, você faz a segunda, a terceira, e quando menos percebe está andando sozinho. Se todo esse furor se transformar em hábito, a gente pode se orgulhar sim de ter dado um primeiro passo.

Política não pode ser tabu, ou papo de velho, ou coisa de radical, e a gente precisa ser fluente e trocar opiniões, SIM: com quem entende, com quem não entende nada, com quem tem opinião formada e com quem está mais perdido que calcinha em lua-de-mel. É um processo que demanda tempo, empenho e acima de tudo, boa vontade e auto-crítica. E saber que além de protestar contra as injustiças, a gente precisa dar o segundo passo/o exemplo. Mais que isso: parar de culpar os partidos, os políticos que estão lá e toda essa corja. A culpa é nossa, que além de discutir, não sabe votar, acompanhar e cobrar os nomes que elegemos. Então, vamos aproveitar o momento pra entender tudo isso. Sim, a panela explodiu, tá uma puta zona na cozinha e a gente nem sabe por onde começar a limpar.

Mas decidir é preciso, porque à noite a gente tem que jantar.

A verdadeira Voz do Brasil

Eu nasci em 1980. Lembro de ter visto o movimento pelas Diretas muito por alto… tinha 5 ou 6 anos, as crianças da época se preocupavam muito mais em jogar bola na rua, coisa que era possível na época. E apesar da despreocupação típica, eu lembro de manifestações, do Doutor dizendo que não sairia do país se a emenda passasse, do minuto do presidente, da Voz do Brasil, e mais pra frente da morte do Tancredo. O povo que ira pra rua naquela época era uns 20, 25 anos mais velho que eu, e vira muita coisa pior num país ditatorial e repressor. Dali em diante vieram os anos Sarney, o Collor, o impeachment, o Plano Real e o Brasil “emergente”. O resto é história conhecida.

Crescer sem bandeira foi crescer assistindo ao Jornal Nacional e lendo Estadão e Veja. Parece absurda tamanha restrição, mas sim, a TV um dia já teve apenas sete emissoras, e jornais e revistas eram fontes reais de informação. Não sei quão diferentes de hoje, mas tenho absoluta certeza que vivi textos mais sérios e um jornalismo menos fantasioso desses mesmos meios. Óbvio que o mundo não era melhor, nem mais puro ou inocente. O mundo é o mundo desde sempre, e os males que a gente vive apenas mudam o jeito que se apresentam. Caráter é coisa que alguns têm, outros não, e poder é poder: pra general, presidente eleito, vice biônico, operário ou intelectual. E admito minha total alienação a tudo isso, classe média estabelecida, uma vez que passei a ganhar meu primeiro dinheiro num país em que a moeda se estabilizava depois de tantos zeros cortados, e o poder aquisitivo vinha numa crescente que gerava um otimismo consumista que anestesiava qualquer inconformismo com a situação do cara que pedia no semáforo. Era só fechar o vidro, e o problema acabava.

Claro que me tornei cético e frustrado na mesma proporção, vivendo essa realidade ridícula. Cresci ouvindo o discurso que a gente só conhece a verdade depois de ver os dois lados da moeda, mas os tais meios de informação já citados (e depois engrossados pelos grandes portais desses mesmos grupos) traziam a informação devidamente preparada, polida, mastigada e com a conclusão pronta, para que não tivéssemos o mínimo trabalho de pensar a respeito. O lado da moeda já vinha escolhido. E entre a novela das oito, o jogo do Timão e o Domingão do Faustão, aceitamos a opinião formada como sendo nossa. Lembro de gente que esperava até o domingo pra opinar sobre os assuntos do momento, pois tinha que ler a revista e o jornal pra “saber a verdade”.

O problema é que essa burrice virou hábito.

E dali em diante, ficamos esperando as coisas caírem no colo, enquanto assistíamos às novelas em que o mundo fala português, o Brasil é branco, hétero e rico, as pessoas não falam palavrão nem acordam de mau humor, os manifestantes gritam e são prontamente ouvidos, os políticos presos no último capítulo e substituídos pelo Tony Ramos, ninguém lava a louça ou a roupa, o Rio de Janeiro continua lindo e todo mundo tem tempo pra um café da manhã de mesa cheia. Isso por três vezes ao dia, incluindo sábados. Porque domingo tem futebol.

Daí, muito me surpreende essa molecada ir pra rua, com um saco bem mais novo e menos enrugado do que o meu, mas igualmente cheio, com voz alta, celular na mão, que filma e fotografa com muito mais intensidade e rapidez do que qualquer registro que eu pudesse fazer na minha época, e meus pais na deles. Em alguns minutos, tudo escancarado por todos os cantos, pois o país de hoje é uma democracia e a censura – que ainda existe SIM, e nos choca com a frequência cada vez maior que se mostra – é impelida por ondas e ondas de fatos reais, sem atores, repórteres engravatados e âncoras de telejornal. Está muito, muito fácil MESMO se informar sobre os lados da moeda agora. E não são apenas dois, mas muitos, pra quem quiser ver e tiver o mínimo de decência de refletir por dois segundos sobre tanto barulho, antes de sair reclamando por aí sobre “os baderneiros”.

Por isso meu amigo, pare com essa história de jogar a culpa nos outros. Mais do que isso: SEU UMBIGO NÃO É A RAZÃO DE SER DE UMA SOCIEDADE, DA QUAL VOCÊ FAZ PARTE, E NÃO O CONTRÁRIO. Espero que as bandeiras que eu não levantei sejam uma a uma honradas por quem chegou depois, e além de ficar reclamando e de saco cheio, resolveu fazer alguma coisa a respeito. A verdadeira Voz do Brasil – irônica e acertadamente, todos os dias, às 18h.

E amanhã tem mais. Graças – não a Deus, mas – a essas mesmas pessoas. Que bom.

*E a quem mantém a postura de que os protestos têm “cunho político”, um conselho: é fácil pra quem está no poder atribuir a culpa a quem não está, e vice-versa: nesses moldes, qualquer manifestação popular é desqualificada, e tudo vira plataforma pra próxima eleição – seja pra quem ataca, seja pra quem defende. Sejam mais inteligentes, e cogitem a possibilidade de mais uma vez estarem manipulando suas ideias.

Onde nos leva tanto barulho?

– É a melhor forma conhecida até então de fazer com que os comandantes sejam aquilo que de fato são, uma vez que são essas as pessoas que são obrigadas a tomar providências, dar declarações públicas e resolver conflitos – sem jingles de campanha, tempo na televisão e apoio publicitário;

– Da mesma forma, é nessa hora que a gente vê pra onde anda o direcionamento ideológico das pessoas. E não sejamos ingênuos: TODAS têm um, por mais simplista e alheio que seja. É um momento excelente pra gente avaliar em que sociedade estamos vivendo, onde estamos nos informando e de que forma, se nossa educação nos permite aprender com quem está além (e ensinar ou ajudar quem está aquém), e vale também para uma avaliação sobre o que de fato queremos (e como conseguir) pro nosso presente e futuro. Além disso, não existe momento melhor para observarmos se estamos sendo suficientemente responsáveis e competentes confiando nossa vida a certos responsáveis por viabilizá-la;

– Enxergar e estudar uma situação nos faz ampliar os pontos de vista. Os protestos de momento são apenas um de tantos pontos que podemos encaixar em nossa realidade. E dane-se se esse ou aquele aspecto não se encaixa em seu estilo de vida – é hora de pararmos de analisar a sociedade partindo do nosso próprio umbigo, e virmos no todo a unidade à qual pertencemos;

– Da mesma forma, de uma vez por todas descartar o partidarismo, e parar de discutí-lo como se fosse futebol. Está provado, comprovado e reprovado que a classe política da atualidade (e de tantas décadas) tem um único interesse, comum e incorruptível: o poder. E ele é enfraquecido no momento em que a democracia faz-se presente de forma literal (quando voltamos ao primeiro item dessa lista);

Aos que acham que os fatos dessa última semana não darão em nada, vale lembrar: não é uma questão de valor de tarifa, mas sim de valor social. A cidadania começa quando sabidamente exercida. Que essa fagulha se transforme numa fogueira, e que esse assunto não caia no esquecimento pela repetição. A discussão não pode se resumir a um problema, dado que nossa vida não é uma equação simples – ela se desdobra, e dia-a-dia os desafios se multiplicam. Que se multipliquem também nossas vozes e ações. Somente discutindo, refletindo e agindo, dá pra acreditar numa mudança pra todos.

Que pegue fogo mesmo

*Foram tantos os textos complementares, notícias e outros pontos de vista que resolvi rechear de links o que vem a seguir – vale a pena não ficar só por aqui, se o fim das contas é enriquecer nossa visão e embasar ainda mais nosso modo de ver as coisas. Acessem, discutam, enfim… façam sua parte.

E a galera foi pra rua.

Os mais exaltados dizem que não é dessa forma, fazendo bagunça, quebrando coisas e atrapalhando a vida alheia. Concordo em parte, quebra-quebra não é argumento, assim como os peitos do Femen também não são. Porém a bagunça e o caos são sim necessários. Analisar o caos pelo protesto é uma visão simplista de algo muito maior, que a gente vive todos os dias, de forma condicionada e acomodada.

Ou te parece normal ter que se deslocar 20, 30 km pra trabalhar em 3 ou 4 avenidas numa cidade com mais de 20 milhões de pessoas? E esse deslocamento acontecer pelos mesmos caminhos esburacados, mal planejados e ultrapassados de sempre, passando um por cima do outro? Ou por corredores de ônibus que começam do lado direito, passam pro esquerdo, voltam pro direito e terminam em lugar nenhum? Os que podem pegar um metrô não conseguem entrar no vagão, dado que a malha férrea não cobre um terço da área que deveria, e a polarização de fluxo acaba com qualquer humor logo cedo? Se você ainda quer tentar os meios alternativos, que tal a bicicleta, sendo esmagado por todo o tipo de veículo, dado que o seu está longe de ser contemplado de fato no meio dessa desordem toda? Talvez andando então… mas até mesmo as calçadas são precárias, desniveladas, às vezes inexistentes de tão estreitas, e aparentemente de uso exclusivo dos que possuem mobilidade perfeita – já que cadeiras de rodas, muletas e afins são bem-vindas somente nas tais 3 ou 4 avenidas – pra chegar lá, meu amigo, é contigo. E sempre lembrando que as mesmas calçadas em São Paulo são habitadas pelos lemmings tecnológicos, que preferem responder ao WhatsApp a olhar pra frente, e trombam mesmo, tendo você 7 ou 70 anos. Se você reclamar, pode ser surrado. Se for gay, será.

Aí trabalhamos nossas 10, 12, 15 horas diárias, torcendo pela manutenção da CLT e seu modelo ultrapassado, e aguardando ansiosamente o 13º salário (dado que os primeiros 5 de todos os anos são exclusivamente pra cobrir nossa taxa tributária padrão – portanto, trabalhamos 11 meses, em carga horária não-remunearada – ou você é daqueles sortudos que recebe hora-extra? – equivalente a 18, pelo salário de 8 e achamos que isso é o melhor dos resultados pra quem pagou mais ou menos 60 ou 70 mil Reais por uma faculdade, após os pais deixarem a vida bancando um colégio particular – dado que o ensino público é uma merda, e pra entrar numa universidade federal tem que ser obstinado e torcer pros caras não entrarem – justamente – em greve vez ou outra). Tendo um salário razoável (minoria), você economiza a alma pra comprar um iPhone (pelo dobro do preço que custa lá fora), um carro (cinco vezes o valor de fabricação), e quem sabe dar entrada num apartamento de 40m² que custa mais de 200 mil Reais. Aí vem casamento, filhos e o ciclo permanece o mesmo.

E por dois parágrafos, você se livrou do caos, certo? Afinal, esse é o curso natural das nossas vidas, e tá tudo certo. Sem bagunça, sem desordem, sem pneu queimando no meio da rua.

Mas espere um pouco: e a Copa? Vamos receber bem os turistas, eles abrem portas, certo? Claro que abrem… e você, tem dinheiro pra adentrá-las e aproveitar os dividendos, ou vai ficar desejando fazer parte da festa aqui, do lado de fora? Afinal, desde os ingressos das partidas às viagens que você nunca fará, está tudo aí, ao alcance das mãos – de quem pode ter. As portas abertas e o capital que eles trazem serão revertidos para o país? Claro que serão, assim como são hoje os custos modestos dos estádios: R$ 1,5bi em Brasília (para futuramente serem aproveitados em jogos da terceira divisão), R$ 550mi em Manaus (que nem futebol tem), e R$ 1bi no Maracanã, que já estava pronto e funcionando. E já que estamos falando em SP, que tal o Itaquerão, com seus R$ 850mi? Claro que trará benefícios para a Zona Leste, mas o Morumbi já estava de pé, o Palestra em reformas com dinheiro privado, e o Pacaembú agora, na iminência do desuso, pode ser repassado à iniciativa privada – justamente o fator que proibiu o Corinthians de adquirí-lo. Quanta organização.

E nem estamos falando dos aeroportos que não foram reformados, dos trens que não saíram do papel, do replanejamento urbano que dará lugar a pontos facultativos e escolta às delegações por vias diversas. O legado da Copa será um universo de improvisos, a custo de reformas caríssimas. Por sinal, conversando com o frentista do posto em que abasteço o carro hoje pela manhã, ele expôs um ponto ao qual eu não havia me atentado: possivelmente algumas reformas acontecerão, sim. Em cima da hora, sem licitações e com fluxo direto de dinheiro público pros bolsos dessa gente podre que governa e comanda o país e o esporte. Isso veio, repito, da boca do frentista. Sim, é só pensar um pouco que a gente escancara as verdades. Vale a última linha desse parágrafo pra citar o nome do presidente da instituição que nos representa mundialmente nesse momento: José Maria Marin, um dos maiores filhos da puta da época ditatorial desse país, que está enchendo as ventas de dinheiro nessa farra toda, assessorado/manipulado por outro déspota chamado Marco Polo Del Nero, igualmente afundado na merda e imunes ambos a qualquer sanção política, e com os bolsos cada vez mais cheios.

Portanto, antes de condenar esse povo que está “na contramão atrapalhando o trânsito”, pense bem o quanto eles são necessários numa democracia que queira se tornar válida e de direito. Sim, protestar hoje é possível graças a muita gente que botou peito em arma e morreu lutando lá nos idos de 60 e 70 – quebrando vidraça, encarando a polícia, falando alto, foram essas as pessoas que permitiram que hoje eu pudesse escrever o que penso, você discordar de tudo isso, e tantos outros se manifestarem da forma que sabem – ou não. Ninguém lá na frente vai se lembrar dos incidentes isolados dos oportunistas baderneiros e vândalos que se aproveitam desse tipo de movimento pra tocar o puteiro – por sinal, são essas as pessoas que a polícia deveria identificar e prender, se fosse o caso. Foi nesse país que o povo foi pra rua (incitado pela TV, grande erro histórico, uma vez que desde 90 as pessaos vêm esperando um novo chamado – e ele não virá), pintou a cara e tirou um presidente do comando. Deputados, vereadores, senadores, governadores e prefeitos também são políticos, fazem coisas iguais ou piores que o rapaz de gel no cabelo, e estão aí, se mantendo há décadas sem um santo capaz de tirá-los do poder. Deixe de ser egoísta e achar que essas pessoas estão TE prejudicando. A definição de democracia é isso: o poder que emana do povo é a voz de quem não é representado por ninguém, e resolve abrir a boca.

Invalidar uma revolta autêntica contra um de tantos abusos que sofremos todos os dias é baixar a cabeça e continuar levando essa vidinha de merda, pagando imposto sem cobrar resultado, votando em palhaço e big brother pra cargo público, e bradando aos quatro cantos que esse país não tem jeito. Isso tudo dentro de uma SUV, chamando o zé povinho de burro, assistindo ao Jornal Nacional e renovando anualmente a assinatura da Veja. Tanta gente lutando por causa tortas e do jeito errado (marcha das vadias, passeata pela maconha, pedalada sem roupa,  tratar parada gay como se aquilo fosse um puta carnaval, e não uma reivindicação de respeito nesse mundo de intolerância que a gente vive) – sim, é hora de validar a voz com argumento, inteligência e inconformismo. As manifestações vazias PRECISAM dar lugar a discussões e ataques à raiz dos problemas reais do país, e não em suas consequências.

Pra tudo tem jeito nessa vida, meu amigo – menos pra morte. E quem diria (eu, no meu ceticismo, ainda quero ver no que isso tudo vai dar), até o Brasil “tem jeito, pelo jeito”.