Mudar de verdade é mudar a verdade

Nossas memórias são compostas de um conjunto bem impreciso de momentos marcantes. Grande parte de cada dia é quase automaticamente esquecida, restando apenas alguns segundos a serem recordados mais pra frente: palpitação, dor, decepção, euforia, resultado. Essas coisas são a memória consistente, e dessa coleção de fatos vem a tal essência na qual a gente se define. Quem ou o quê causa isso tudo? Qualquer coisa que emocione a gente – pro bem ou pro mal.

Tudo isso pra chegar aqui e recomendar algumas visitas.

Assisti The Help na tarde desse domingo. Sim, você já assistiu trocentos filmes que tratam sobre racismo por aí – e nem por isso o assunto é menos revoltante. Deixemos de lado o fato do filme ser excelente, tecnicamente falando. Não sei se existem exemplos suficientes no mundo que nos deixem menos abismados com a capacidade do ser humano em se mostrar rasteiro, cruel e egoísta. Num momento em que tantos valores são levantados e discutidos (justamente) por aí, talvez uma olhada para um passado não tão distante quanto parece nos mostre piores do que a gente mesmo consegue se imaginar. E sim, existe o outro lado – longe de mim entregar o enredo de um filme a quem ainda não o tenha visto. Mas ele é exceção, e não de hoje.

E eu me pego pensando: no que de fato realmente evoluímos? No que algumas situações se transformaram de fato? As conquistas igualitárias foram enormes no decorrer dos tempos, e outras acontecem nesse exato momento… mas estamos assimilando isso tudo da maneira correta, ou velamos nossos preconceitos numa falsa moral que é necessária para o convívio pacífico com aqueles que em algum momento olhamos de lado? Há mais de século deveríamos estar nos reeducando de berço, com sinceridade e cara limpa, mas continuamos um discurso torto disfarçado às vezes de humor, às vezes de religão, quando não de outras desculpas esfarrapadas, perdurando nossa ignorância de geração em geração. Minamos os bons exemplos, e exercemos dia-a-dia nossa função de separar joio e trigo, sendo que ambos nascem da mesma terra e crescem sob o mesmo Sol.

Dito isso, assisti também George Harrison: Living in the Material World.

Eu nunca fui de me apegar a biografias, com raras exceções (casos de Johnny Cash e Ray Charles). George Harrison seria sem dúvida mais um caso, dada a idolatria atribuída ao rapaz por este que vos escreve. Mas o documentário de Scorsese foi além, e trouxe ao longo de seus 208 minutos uma profundidade rara, coisa que somente um beatle como George e outra meia dúzia de nomes seria capaz de gerar. Muito além da música, o foco (principalmente na segunda parte do documentário) é sobre o ser humano e sua busca pela espiritualidade – tantas vezes transparecida em sua obra. A coisa vai além, e o que vemos é a história de um personagem (vale chamá-lo dessa forma?) de beleza ímpar; um ser humano que elevou sua própria existência a níveis que nem suas companhias mais próximas foram capazes de definir ou descrever, mesmo sob tantas óticas diferentes. A unanimidade, porém, foi alcançada no legado que ele deixou. E novamente: não estamos falando de música.

Juntamos os pontos.

Poderia-se atribuir tal evolução de Harrison às aberturas que a fama e o dinheiro lhe proporcionaram. Não seria um erro: não é todo mundo que pode “se dar” um retiro espiritual na Índia, dividir um período da vida com um guru e seu grupo, ou mesmo ter acesso às drogas e alucinógenos de forma irrestrita. É um modo de se enxergar a coisa… mas me parece uma análise rasa, até simplista pra quem acompanha os relatos do filme. Mais do que isso: que é capaz de sentir o carinho e a grandeza do ser humano nas letras e melodias compostas por George durante sua passagem por aqui. A reflexão – mesmo que breve – tomando-se por base esses aspectos, já distancia qualquer preconceito da vontade, esforço e capacidade que ele teve de evoluir enquanto ser humano. Evolução que é cobrada ali, algumas linhas acima. A compreensão de nossa insignificância enquanto unidade, ao mesmo tempo em que funcionamos como agentes determinantes e exercemos impacto direto na vida de quem nos cerca.

Acho que a grande vitória de qualquer pessoa é partir dessa vida deixando uma saudade gostosa em quem fica, e memórias que resultem em sorrisos sinceros e espontâneos, mesmo que acompanhados de lágrimas. Pouco importa o que você teve, com o que se parecia, de que cor era sua pele e a textura da boca que você beijava. Vale sim quem você foi, essencialmente: sua presença fez diferença? Quem eram essas pessoas que você colecionou durante sua passagem? Elas valiam a pena, a ponto de suas opiniões fazerem tanta diferença em cada decisão que você tomava? Pra quem, afinal de contas, você existiu?

Olhar pra trás nos ensina muita coisa, mas ensinar não é somente comover. É transformar, sincera e espontaneamente. Não faz sentido levar adiante aquilo que nos destrói. Não adianta ter vergonha e insistir no erro – e vergonha é um sentimento dos mais espontâneos e difíceis de se disfarçar. Com séculos e séculos de erros sacramentados, dizer que “é hora” de mudar alguma coisa é uma heresia com o conceito de tempo. Insistimos em ir contra nossa própria natureza, e perpetuamos caminhos equivocados. Sempre há cura, claro que há… um mesmo erro seria insistir no pragmatismo de bater no que fere sem oferecer o remédio. E tomando como exemplos (bobos, mas exemplo é exemplo) os dois filmes, as soluções estão lá. Discutidas, pensadas e repensadas, com causas e efeitos. Porque nenhuma mudança é simples, fácil e agradável. Dói corrigir. A cabeça pesa, a vergonha surge, a humildade pede o espaço em que nosso orgulho vive e domina. A vitória não é imediata, e nem sempre uma certeza. Porém, vislumbrá-la em nossa própria capacidade de mudança é a luz necessária pra um novo caminho. Não, nada é fácil.

Mas se a vida fosse um mar de rosas, não haveriam lágrimas em nosso último ato. Que sejam pelo menos de alegria, e gratidão por alguém que fez o seu melhor.

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