A verdadeira Voz do Brasil

Eu nasci em 1980. Lembro de ter visto o movimento pelas Diretas muito por alto… tinha 5 ou 6 anos, as crianças da época se preocupavam muito mais em jogar bola na rua, coisa que era possível na época. E apesar da despreocupação típica, eu lembro de manifestações, do Doutor dizendo que não sairia do país se a emenda passasse, do minuto do presidente, da Voz do Brasil, e mais pra frente da morte do Tancredo. O povo que ira pra rua naquela época era uns 20, 25 anos mais velho que eu, e vira muita coisa pior num país ditatorial e repressor. Dali em diante vieram os anos Sarney, o Collor, o impeachment, o Plano Real e o Brasil “emergente”. O resto é história conhecida.

Crescer sem bandeira foi crescer assistindo ao Jornal Nacional e lendo Estadão e Veja. Parece absurda tamanha restrição, mas sim, a TV um dia já teve apenas sete emissoras, e jornais e revistas eram fontes reais de informação. Não sei quão diferentes de hoje, mas tenho absoluta certeza que vivi textos mais sérios e um jornalismo menos fantasioso desses mesmos meios. Óbvio que o mundo não era melhor, nem mais puro ou inocente. O mundo é o mundo desde sempre, e os males que a gente vive apenas mudam o jeito que se apresentam. Caráter é coisa que alguns têm, outros não, e poder é poder: pra general, presidente eleito, vice biônico, operário ou intelectual. E admito minha total alienação a tudo isso, classe média estabelecida, uma vez que passei a ganhar meu primeiro dinheiro num país em que a moeda se estabilizava depois de tantos zeros cortados, e o poder aquisitivo vinha numa crescente que gerava um otimismo consumista que anestesiava qualquer inconformismo com a situação do cara que pedia no semáforo. Era só fechar o vidro, e o problema acabava.

Claro que me tornei cético e frustrado na mesma proporção, vivendo essa realidade ridícula. Cresci ouvindo o discurso que a gente só conhece a verdade depois de ver os dois lados da moeda, mas os tais meios de informação já citados (e depois engrossados pelos grandes portais desses mesmos grupos) traziam a informação devidamente preparada, polida, mastigada e com a conclusão pronta, para que não tivéssemos o mínimo trabalho de pensar a respeito. O lado da moeda já vinha escolhido. E entre a novela das oito, o jogo do Timão e o Domingão do Faustão, aceitamos a opinião formada como sendo nossa. Lembro de gente que esperava até o domingo pra opinar sobre os assuntos do momento, pois tinha que ler a revista e o jornal pra “saber a verdade”.

O problema é que essa burrice virou hábito.

E dali em diante, ficamos esperando as coisas caírem no colo, enquanto assistíamos às novelas em que o mundo fala português, o Brasil é branco, hétero e rico, as pessoas não falam palavrão nem acordam de mau humor, os manifestantes gritam e são prontamente ouvidos, os políticos presos no último capítulo e substituídos pelo Tony Ramos, ninguém lava a louça ou a roupa, o Rio de Janeiro continua lindo e todo mundo tem tempo pra um café da manhã de mesa cheia. Isso por três vezes ao dia, incluindo sábados. Porque domingo tem futebol.

Daí, muito me surpreende essa molecada ir pra rua, com um saco bem mais novo e menos enrugado do que o meu, mas igualmente cheio, com voz alta, celular na mão, que filma e fotografa com muito mais intensidade e rapidez do que qualquer registro que eu pudesse fazer na minha época, e meus pais na deles. Em alguns minutos, tudo escancarado por todos os cantos, pois o país de hoje é uma democracia e a censura – que ainda existe SIM, e nos choca com a frequência cada vez maior que se mostra – é impelida por ondas e ondas de fatos reais, sem atores, repórteres engravatados e âncoras de telejornal. Está muito, muito fácil MESMO se informar sobre os lados da moeda agora. E não são apenas dois, mas muitos, pra quem quiser ver e tiver o mínimo de decência de refletir por dois segundos sobre tanto barulho, antes de sair reclamando por aí sobre “os baderneiros”.

Por isso meu amigo, pare com essa história de jogar a culpa nos outros. Mais do que isso: SEU UMBIGO NÃO É A RAZÃO DE SER DE UMA SOCIEDADE, DA QUAL VOCÊ FAZ PARTE, E NÃO O CONTRÁRIO. Espero que as bandeiras que eu não levantei sejam uma a uma honradas por quem chegou depois, e além de ficar reclamando e de saco cheio, resolveu fazer alguma coisa a respeito. A verdadeira Voz do Brasil – irônica e acertadamente, todos os dias, às 18h.

E amanhã tem mais. Graças – não a Deus, mas – a essas mesmas pessoas. Que bom.

*E a quem mantém a postura de que os protestos têm “cunho político”, um conselho: é fácil pra quem está no poder atribuir a culpa a quem não está, e vice-versa: nesses moldes, qualquer manifestação popular é desqualificada, e tudo vira plataforma pra próxima eleição – seja pra quem ataca, seja pra quem defende. Sejam mais inteligentes, e cogitem a possibilidade de mais uma vez estarem manipulando suas ideias.

Uma ideia sobre “A verdadeira Voz do Brasil

  1. Ainda me lembro de quando era criança, lá pelos 4, 5, 6 anos, via as notícias pela TV e pensava “onde será que tudo isso acontece?”. Simplesmente, parecia distante o suficiente pra eu me sentir seguro, certo de que tudo aquilo jamais bateria à minha porta.

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