O frentista que me deu a Bíblia

Estava em São Bernardo, se não me engano. Fim de tarde, já havia feito o que tinha que fazer (e não me lembro do quê exatamente). Bora abastecer o carro e voltar pra São Paulo. Encontrei um posto de gasolina próximo ao retorno, estacionei, e enquanto esperava fora do carro o frentista veio puxar papo comigo…

– Esse trânsito tá foda – ele disse.
– Pois é, não tá fácil pra ninguém.
– Trânsito, essa gente mal-educada, estressada, povo estranho esse sem paciência.
– Pois é, nego fala o que der na telha, e a gente que não tem nada com isso que se foda.
– É rapaz! Eu ouço cada coisa aqui que você não faz ideia… pra acalmar, eu dou uma respirada e procuro a coisa certa a fazer, ao invés de sair por aí fazendo igual, sacomé? Ó, se você quiser, dá uma lida aqui no meio do trânsito quando nego vier te encher o saco – abre qualquer página e lê que ajuda. Leva que você é gente boa.

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E me deu uma biblinha. Mirim. É o que tá escrito na capa. Guardei no bolso e agradeci pela gentileza, mesmo sendo completamente avesso ao livro em questão, ali estava um cara de bom coração e boas intenções: a biblinha podia ser um copo d’água, um sabão no vidro do carro, uma calibrada de pneu, um desconto na gasolina. Mas era esse o presente  dele, e seria uma baita grosseria recusar. Acabei de encontrá-la, em meio à bagunça na arrumação do escritório. Sim, a biblinha do cara do posto continua comigo, e eu vou guardá-la naquela caixa de memórias que todo mundo tem, pois a recordação que eu tenho dela é a de um papo tranquilo com um cara que nunca havia visto a minha cara, que não se preocupou com o que eu iria achar, fazer ou dizer sobre aquilo, mas que achou por bem me fazer um agrado porque “eu sou gente boa”.

Sem forçar a barra. O ser humano ainda tem jeito quando aquilo que nego vive pregando besta e gratuitamente por aí (quase sempre da boca pra fora) sai naturalmente de dentro do peito de uma pessoa de bem. Ninguém duvida da validade da mensagem: o que a gente duvida mesmo é da validade das pessoas.

Dá pra acreditar.

Sabão de coco?

A gente sonha um dia em poder ter um espaço só nosso, onde se possa fazer as coisas do seu jeito: estender uma rede, pintar uma parede colorida, encher a geladeira de cerveja e comer porcaria, chamar os amigos pra virar a noite falando besteira, encontrar um aconchego que se sinta saudade quando distante. Tem gente que gosta de janela grande, de varanda gourmet, de cama king size, de sala grande, de cozinha americana, de ar condicionado. E tem gente que não faz questão de nada disso, desde que a porta feche, a privada não vaze e a geladeira funcione.

Eu sonhava em ter um lugar pra acordar de domingo, e aproveitar a preguiça. Como já morei em sobrado enorme e apartamento minúsculo, não fechei uma ideia mental desse “ambiente perfeito”. Um teto, e depois o que vier: pufe, sofá, tapete. Uma TV. Casei com uma menina que dormia no chão, e que por muitas noites dividiu um micro com um monitor de 17″, que rodava DVD. Servia quase como um sonífero eletrônico, tal a força que a gente fazia pra ler legenda naquela coisa minúscula. Funcionava pro que fosse, e a gente teve noites e noites de pura felicidade nesse cenário de dois elementos.

Depois de construirmos o que temos hoje (sim, constrói-se quando a gente tem metas e trabalha pra isso – danem-se se as paredes já estiverem de pé: transformar uma casa em um lar é responsabilidade de quem vive debaixo desse teto), hoje pela manhã desmontei após mais de 3 anos a última caixa de nossa mudança. Senti orgulho, muito orgulho de termos nesses 60m² o nosso canto. A parede vermelha, a rede estendida, o quebra-cabeças jogado no meio da sala sem que ninguém te encha o saco por estar lá. Sei muito bem o quanto minha pequena quis um dia poder ter tudo isso pra si – ela também é feita de gostos simples. Eu, tenho aqui meu escritório, minhas fotos penduradas, uma cozinha em que não preciso torcer a coluna entre esquentar a água e picar uma cebola. Me basta.

A pintura da parede do corredor está rachada. O teto do banheiro precisa de um bom trato. Nem mexemos no quarto, que ainda é meio de quem saiu – muito mais do que de quem entrou. Faltam coisas, claro que faltam, sempre faltarão, mas a gente tem nossas prioridades. NOSSAS prioridades, que não dizem respeito a absolutamente ninguém. A Dé precisa matar um dragão por dia, sendo que esses dragões são cada vez maiores, e ela volta pra casa detonada, física e mentalmente. Eu preciso caçar os meus dragões, que ultimamente têm sido mortos com muito sangue, exatamente como se deve ser. Tudo o que a gente quer é, a partir das 18h30, derramar o corpo na sala e curtir um pouco nosso casamento: conversando sobre o dia (e sim, ela fala- e como fala, e ri, e esbraveja, e xinga, e depois ri de novo), assistindo série, comendo uma pizza, jogando um videogame, ficando de preguiça.

Claro que 90% do que acontece aqui em casa não diz respeito a ninguém. A NINGUÉM. Ambos temos dias ruins, mas a diferença é que a gente se entende. Se suporta. Se levanta. Já sabe ler onde acontecem os problemas, e os resolve na mesma hora, pra que não se tornem uma bola de neve que arrebente nossa cabeça lá na frente. Temos feito isso há mais de 5 anos, quase 6. É natural, a gente nem se preocupa com a besteiragem que cobram da gente por aí. Já chorei muito no ombro dela, esbravejei, me perdi e me encontrei – e vice-versa.

Filhos? Mudanças? Adaptações? Obrigado, mas SÓ A GENTE sabe o que quer. E se quer. Talvez o nosso “problema” seja esse: a falta de dependência dos outros. Ficou meio ridículo ter que sair por aí justificando o porquê de passagens aéreas ao invés de exames pré-natal… como se alguém tivesse alguma coisa a ver com as nossas coisas. Não me lembro de sair por aí perguntando o porquê fulano trocou de carro, sicrano pagou R$ 2000,00 num celular, atualizou o iPad cujo modelo antigo não completou nem um ano. Não me diz respeito, por mais que eu não entenda, e acho que quem escolhe A, B ou C pra vida não está a fim de ficar por aí justificando suas decisões. Mas convenhamos: viver a vida do outro é uma baba, se compararmos a dificuldade que é viver a nossa.

Portanto, o fechamento desse texto poderia ser um desabafo, mas prefiro substituir o “estado nervoso” por dois exemplos de reflexão que fizeram parte da minha vida:

1) um, dado pelo meu pai e relatado por minha mãe depois de muito tempo, quando de uma certa intervenção da minha avó quanto à alguma coisa que eu fiz – meu pai virou-se pra ela e disse: “Dona Lina, dentro da minha casa quem cuida do meu filho sou eu, e a senhora não tem nada a ver com isso”. Sim, a casa é de quem compra e nela vive, e as coisas que acontecem (ou não) dentro dela, idem. Se você costuma limpar as mãos na toalha da sua mesa, pense se é educado fazer o mesmo na toalha alheia;

2) e outro conselho que tive há pouco tempo, vindo de uma crítica do meu irmão, e posteriormente (sim, me mostraram duas vezes o mesmo problema – o que já é suficiente pra ligar o bom-senso e fazer uma autocrítica) de um apontamento da Dé, que me disse: “Aprenda a dormir com os problemas, antes de sair por aí reagindo que nem um louco e falando merda pros outros”. Deu resultado, porque é importante ouvir o que a gente é, principalmente quando a avaliação sai da boca de quem a gente fere. E pensar a respeito, se aquilo for uma recorrência. Se eu ainda tivesse meus cabelos, alguns teriam sido poupados se eu aprendesse isso antes.

O orgulho da manhã foi ofuscado pelo absurdo da noite. Mas não tem erro: problema, a gente resolve. Mas resolve pra valer, e de uma vez por todas. Nosso caminho nunca foi fácil, e mesmo quando parece ter se tornado menos espinhoso, inventam mais um obstáculo logo à frente, como se já não tivéssemos sofrido o suficiente até hoje, nem problemas do dia-a-dia pra resolver…

Felizmente a gente não precisa levantar a voz pra se fazer ouvir. Argumento resolve.