Amem direito

Uma das coisas mais importantes pelas quais passei em minha vida foi coincidentemente o possível pior momento profissional dos meus pais – mais especificamente, do meu pai – numa época em que ele era o único a trabalhar em casa (éramos crianças, ele estupidamente transformou minha mãe de profissional dedicada a dona de casa, e ela estupidamente aceitou essa condição: mea culpa para ambos, numa época em que isso era condição normal). Acabou o lazer, acabou o impulso consumista, e por muito pouco não acabou a comida. Natal, aniversário, datas do comércio… foi tudo pro espaço, e a gente TEVE que entender e se adaptar a isso. Mudamos de escola particular pro Senai (e se não passássemos no concurso, era colegial em escola pública ou parar de estudar), o carro apodreceu e veio o transporte público, e o casarão em Santo Amaro deu lugar a um apartamento possivelmente 7 ou 8 vezes menor.

Nossa infância “foi encerrada” em certo momento, com tudo isso acontecendo.

Mas não faltou carinho. Nunca faltou diálogo, muito menos olho no olho. A gente (eu e meu irmão) sabia o que estava acontecendo, e o porquê de tantas mudanças. Era o início dos anos 90, o plano Collor, o dinheiro que ainda não valia nada, uma inflação descontrolada, o mercado em frangalhos. Independente de tudo isso, nossa vida continuava, e dentro de casa éramos o que sempre fomos. Crianças se adaptam às mudanças, acham novas diversões, passam ilesas às preocupações da vida adulta, mesmo quando são atingidas vez ou outra por suas consequências. Obviamente, passamos a presenciar algumas coisas às quais ainda não havíamos tido contato: brigas aqui e ali, a tensão por não podermos fazer algum programa que fazíamos com frequência antes, a tristeza e a melancolia de um fim de ano sem presentes. Mesmo com tudo isso, éramos 4 à mesa, falando as besteiras de sempre, rindo das histórias absurdas do velho, discutindo escola, futebol e televisão, brincando com a minha mãe. Nunca precisamos de estupidez pra entender que nem sempre o sim aparece, e que o não é consequência da vida sem fábula. Aprendemos a ir atrás.

Assim, crescemos. Mais do que aumentar os dígitos na idade, entendemos o funcionamento da vida em que a gente se enquadra – sim, pois existem tantos outros mundos e realidades paralelos àquilo que somos que seria um absurdo afirmar que entendemos “o funcionamento da vida”. Ninguém entende, porque ninguém vive todos os desdobramentos de um prisma tão complexo em somente algumas décadas. Entendemos o contexto: quem somos, onde estamos, o que fomos e onde queremos chegar. E a partir daí, seguimos adiante – cada um pro seu lado, e do seu jeito. Meu pai deixou essa jornada já há quase 4 anos, e os remanescentes estão aqui: os irmãos casados, um deles com uma filha, e a mãe está descobrindo um novo universo ao qual ela agora pode realizar o quê, quando e como quiser.

Ninguém deve nada a ninguém, pois cada vida é de quem vive.

E por não dever – e viver, me sinto muito feliz e plenamente satisfeito com as escolhas que fiz – são as únicas que sou capaz de responder em algum momento. Um amor, nosso canto, nossas coisas. Nos encontramos no mesmo fundo, de poços diferentes, mas com o mesmo cheiro horrível e total ausência de luz. Subimos, nos conhecendo e nos apoiando, dividimos o mesmo colchão num quarto de apartamento alugado, juntamos os poucos que tínhamos, tapamos os ouvidos – improváveis, errados e incorretos que éramos aos olhos de quem gosta de escolher arroz com a vida dos outros – e chegamos aqui em cima, sem precisarmos nos apoiar nas costas de ninguém. O que se seguiu foi um resgate de valores que nos proporcionamos, e nos tornamos o que somos: olho no olho, sem censuras, construindo nossas próprias regras pra que essa coisa conjunta de “eu mais ela” que hoje a gente chama de família desse certo pros dois.

Tantas linhas pra reafirmar que a vida é curta demais pra gente pensar que o universo gira em torno da gente. Foi na total desesperança que encontrei uma saída. Uma saída que estava afundada em dores iguais ou piores que as minhas, ambas causadas pelos motivos às vezes desumanos, às vezes de pura crueldade. Encontrei na minha história pessoal, dos meus amigos, de gente que em nada se parecia comigo mas que cruzou o meu caminho em algum momento, e até em gente que eu detestava, o repertório necessário pra em momentos difíceis, parar por dois minutos e pensar em “como eu me livro dessa merda e saio desse buraco?”. Pra retomar a ideia do primeiro texto desse novo espaço, e ser inteligente e humilde o suficiente pra pensar nas ações antes de realizá-las; mais do que isso: pra que antes de emputecer e achar que o mundo vai contra quando algo não sai conforme o planejado, ter a decência de me perguntar se não fui eu o causador dos problemas, antes de sair por aí, apontando dedo pros outros. Aprendi, com todo esse mundo de gente que eu amei, odiei, machuquei, perdoei e me desculpei. Tive bons e maus exemplos, nos mesmos lugares. Continuarei a ter, a errar e a aprender. Nunca é suficiente, porque cada dia é uma novidade. E é assim pra todos nós.

Que cada um saiba o que é realmente importante pra si. Que se descubra em cima da sua própria história. Que não precise procurar nas respostas dos outros um mantra pros seus caminhos. Que seja autêntico pra reconhecer os próprios méritos, e inteligente o suficiente pra enxergar os próprios erros. Enxergando, que se corrija aquilo que machuca. Acima de tudo, que entenda que o que se vive aqui nesse mundo é uma sequência de momentos dedicados a quem se ama. É o que somos: agentes realizadores dos sonhos alheios. As lembranças serão sempre aquilo que deixamos nos sentidos – pro bem ou pro mal. Olhos nos olhos.

Assim sendo, amem direito.