Manzarek

A estrela sempre foi outra no The Doors, com justiça. A poesia vivia nas palavras de Jim Morrison, e ganhava vida na música dos outros três. Ninguém lembra muito de Manzarek, Densmore e Krieger, pois a figura icônica da banda foi imortalizada na imagem do vocalista, imortalizada em sua foto sem camisa, braços abertos e olhar penetrante. Simples e intenso. As músicas da banda, pelo contrário, são de uma complexidade absurda – as composições permanecem únicas, pouco do que foi feito desde seu surgimento consegue se aproximar da sonoridade deliciosamente tosca que compreende as gravações daquela época. E é de fato muito difícil fugir da hipnose causada pela voz de Morrison – que mais do que a imagem marcante, possuía um timbre capaz de te derrubar nos primeiros acordes de qualquer música num transe interrupto.

jim_morrison_the_doors_with_aeroplane

Ninguém discute a capacidade artística do The Doors: gostando ou não, foi uma banda única, absolutamente autêntica. Poucos se firmam na História com esse adjetivo, ainda mais deixando uma obra tão popular, influente e atemporal quanto eles. E a peculiaridade talvez se explique desde o início, numa combinação sonora muito pouco usual: sem baixo, com teclados. Chegamos a Ray Manzarek.

Que faleceu ontem, vítima de câncer. Existem sites aos montes descrevendo sua história, e não serei eu a fazer coisa melhor. O que posso de fato dizer é que poucos tiveram a capacidade de trazer tanto peso e força à música com um instrumento habitualmente utilizado para florear uma melodia. Um cara capaz de compor verdadeiros riffs, algo que normalmente se atribui aos grandes guitarristas, e a uns poucos bateristas. Ouvir cada disco do Doors é imergir num universo lisérgico e de poesia que passam longe do tédio. As letras não são declamadas, mas rasgadas com a voz rouca de Morrison, e os teclados de Manzarek te empurram ladeira abaixo sem dó nem piedade. Assim como aconteceu com o Zeppelin, o Who e outra meia dúzia de monstros, a banda foi a feliz união de alguns caras que combinavam perfeitamente talentos absurdos.

Por isso, é muito triste quando alguma dessas figuras desaparece. A gente esquece que a importância de alguns ídolos só é reconhecida hoje por um “aparato” que permitiu que eles brilhassem algum dia. Resumir Ray Manzarek a um simples ajudante seria menosprezar seu talento, mas Jim Morrison conseguiu traduzir a obra atemporal de uma banda diferenciada em versos assustadoramente fortes. Difícil competir. Mas não somar, e isso ele fez com maestria, com dígitos maiúsculos e melodias que conectam ouvidos e coração de uma forma inexplicável. Nada se compara ao Doors, pois nunca teclas serão capazes de soar mais alto que cordas. Não dessa forma, e não dividindo um palco com Jim Morrison.

Ficam as palmas. E mais um vazio que a gente preenche com música.