Queimem as bruxas

No Rio, um grupo de “justiceiros” endinheirados prendem pelo pescoço um moleque com uma trava de bicicleta no poste, e o deixam lá, nu e humilhado madrugada adentro. Em São Paulo, 100 desocupados invadem um treino de futebol pra quebrar as pernas dos jogadores, e atropelam os funcionários do Clube que tentam defender os atletas e a si mesmos.

Virou isso, tá tudo perdido – e é esse o veredicto óbvio.

Porque na era do ataque gratuito e da opinião de bate-pronto, a gente já se posiciona de cara e acusa o moleque (?) que era assaltante e teve o que merecia, já que a polícia é apática e o governo inoperante, e o cidadão tem mais é que se defender mesmo.

ESPEREM UM POUCO. Estamos falando de queimar bruxas em praça pública, meus amigos. Da justiça pelas próprias mãos. Do cara que risca teu carro e que você enforca no primeiro poste que aparecer, ou da empregada que quebrou um prato e você foi lá e quebrou a mão da coitada, em represália. É isso mesmo? A gente condena as manifestações populares, se distancia cada vez mais da maioria dos brasileiros (que continuam sem acesso a coisa alguma, inclusive a esse texto, pra dizer o mínimo), e com nossos iPhones registramos a violência descabida, pra que com meia dúzia de palavrinhas escritas em Impact ela vire piadinha de Facebook? O cara que não tem educação, comida, acesso, que vai pro shopping e é perseguido pela polícia, que não tem direito a ouvir sua música, a andar livremente sem levar um enquadro… esse cara é o verdadeiro criminoso num país que não é capaz de condenar um engravatado, e cuja liberdade só existe pra que, entre outros absurdos, um político faça uma vaquinha via internet pra que paguem sua fiança, após ele ter enfiado a mão BEM FUNDO em todos os bolsos possíveis?

Façam-me o favor. É fácil tacar pedra no ladrão de galinha mesmo.

E antes que me venham (e se vierem, será de se lamentar) me acusar de defensor de bandido (!), a minha dúvida é se esse clamor e indignação é uma bandeira que todo brasileiro levanta por cada abuso e lesão que sofre, seja qual for: moral, fiscal, física, social e etc. Como funciona o seu conceito de justiça, meu amigo? Você realmente vê nesse país “um país de todos”? Ou acredita, desde que “todos” não sejam pretos, pobres e favelados?

De novo: pensem antes de sair por aí espinafrando o moleque. A Roseana vai concorrer ao Senado, o José acabou de sair da presidência de lá faz 4 dias, e vocês querem falar de justiça?

Porque “fazer justiça com as próprias mãos” é permitir com que aquele que discorda de você te repreenda da forma que bem entender. É deixar que cada um reaja conforme a própria consciência (sendo que cada vez mais poucos são os que a têm). É achar certo que um cara invada um lugar pra quebrar as pernas do outro, “porque os gols não saem” – e se você acha isso engraçado, que tal seu chefe entrar no escritório e quebrar seus dedos, porque as metas não foram alcançadas?

Não é demais lembrar o quão machista a nossa cabeça ainda é, achando que muito problema a gente resolve mesmo é na porrada. De quê adianta o discurso, se da porta pra dentro você ainda espera que sua esposa faça as “tarefas de casa”? Você fica indignado em receber ordens de uma moça? Faz piada com a “Dona Maria do Volante”? Que tipo de exemplo você acha que o mundo recebe quando tua cabeça continua funcionando no século passado, onde o sexo determinava (declaradamente, pois isso continua a acontecer de uma forma hipócrita e velada atualmente) se você seria mandante ou mandado? Esse pensamento contaminado continua vivo, latente e repulsivo – e nos exemplos que surgiram aqui (pinçados num universo de tantos outros) continua evidente a necessidade da provação de virilidade por meio da estupidez. É absolutamente lamentável.

Eu não sou um cara politizado, nem preciso dizer. Eu sou o cara que acompanha de longe e procura ler as coisas certas antes de sair por aí falando merda – e nem sempre sou bem-sucedido nisso. Mas não preciso de muita inteligência pra ver que a ignorância geral (inclusive de uma maioria muito bem educada e com poder aquisitivo) está tomando rumos absurdamente perigosos. Achar bacana prender um cara num poste, quebrar as pernas de outro e outros absurdos demonstra um total descompromisso com a sociedade; um egoísmo absurdo em não ser capaz de se colocar na posição de quem é atingido pela violência gratuita, física ou psicológica; uma total falta de noção em identificar racismo, machismo, homofobia e outros cânceres que passamos adiante como se fossem piada. Estamos totalmente alienados, e procurando respostas prontas pra coisas que não conseguimos entender. E não conseguimos por uma simples razão: é impossível racionalizar irracionalidade.

Não vai mudar nada se, antes de qualquer coisa, a gente não respirar antes de reagir A QUALQUER COISA. Eu sou cético quanto a grandes mudanças imediatas, mas não perco a fé nas pessoas – tanta luta por espaços públicos, a direitos iguais, a cumprimentos da justiça escrita desse país… sim, existe uma vertente boa, e ela não é necessariamente chata, intelectual ou o escambau – às vezes ela é só bem-intencionada, e se sente acuada em não se manifestar por medo (justo) de represálias cada vez mais agressivas e infelizes – as mesmas que me fazem fugir de um espaço de tiroteio como um facebook da vida, e me trazem aqui pro meu canto, onde eu posso racionalizar com os que têm paciência e três minutos livres pra ler um texto em parágrafos.

Existe uma meia dúzia de pessoas que conheço (umas mais, umas menos) que me inspiram. Não sou seguidor cego, fanático e alienado de nenhuma delas, mas o funcionamento de suas cabeças me fazem coçar aqui. Acho que eu preciso fazer minha parte também, no pouco que me cabe e naquilo que me deixa indignado. Que a gente pare com essa atrofia cerebral imediatista e comece a pensar naquilo que somos, no que de fato queremos passar e o que fica daqui a pouco pra quem herda, se educa ou nos vê como exemplos. Estamos num caminho muito, muito errado. E se a gente não sentir vergonha daquilo que viramos, vai ser muito difícil reagir.

E sobreviver. Porque nunca se sabe quando vão querer te arrebentar por aí.

2 ideias sobre “Queimem as bruxas

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