Odiemos

(Não se desespere, meu amigo/minha amiga. Apesar de parecer, este não será um texto sobre futebol)

E eis que há pouco (passa das 2h da manhã) o São Paulo levou uma verdadeira sarrafada do Galo pela Libertadores, num 4×1 digno de valer o mais caro dos ingressos lá no Independência.

Instantaneamente a torcida tricolor, (justamente) emputecida com o resultado, invadiu as redes sociais – que imagino, sejam todas as possíveis, mas eu só tenho Facebook então vou me basear por ele – vociferando a plenos pulmões contra quem quisesse rir da desgraça alheia, e tripudiar o momento notoriamente vexatório. Não é a primeira vez que eu abordo esse assunto, portanto vale retomar o raciocínio após algum tempo, visto que nada mudou (no comportamento do ser humano – amigo sãopaulino, nada pessoal, e continue lendo para comprovar minha linha de raciocínio).

Torcer tornou-se um problema que vai muito além da paixão clubística. O cenário que se tem é de uma ode ao preconceito, disfarçada de paixão: ladrão, viado, pobre, burro, preto, velho, paraíba – a metralhadora giratória não tem mais a ver com a rivalidade pela rivalidade. Essa, sadia e saudável, tolerante e inteligente, foi exilada em algum canto civilizado do mundo. Os costumes foram banalizados e engarrafados, sendo hoje produto do marketing desse futebol moderno cada vez mais esterilizado. E os ataques são direcionados a algo que vai muito além da camisa – por sinal, a camisa é pretexto.

Começando pelo comportamento vendido (e comprado) pelas torcidas, onde tudo é proibido ante a descaracterização do modelo proposto ao torcedor/cidadão atual – que não pode levar bandeira, beber seu chopp, comprar um acarajé, xingar o juíz, rivalizar. Todos os movimentos são pensados e cada agremiação aplica e segue uma linha de comportamento. No caso do meu time, não podemos torcer contra, pois nos tornamos os “anti” (fruto de nossa própria criação, num claro exemplo Frankenstein de imbecilização de massas). Assim como tivemos o já conhecido “torcer pro São Paulo é uma grande moleza“, que colocava a equipe tricolor acima do bem e do mal – e por aí vai. Assim, vamos construindo uma geração de débeis mentais, que odeiam por odiar, e vomitam seus absurdos sem entender o porquê de algum dia aquela bandeira pela qual esbravejam ter se tornado grande – e a grandeza de uma equipe e sua torcida é um resultado histórico do embate e rivalidade com outros de mesma importância, ponto.

Se a gente olhar de fora, vai notar que o mesmo acontece além dos limites de campo, o tempo todo. Deixemos o futebol de lado (e eu adoro usá-lo como metáfora pro cotidiano – acostumem-se). Os tais embates religiosos, a afirmação convicta da culpa sem a prova, a mudança imediata de leis devido a determinado acontecimento, o populismo de capa de revista – tudo isso tem seguido um script um tanto óbvio, que sugere a sequência “impacto, discórdia, disseminação“. Em segundos, uma multidão toma partido em espalhar a foto do cara desaparecido, da mulher/perua/vaca que bateu no carro de fulano, do político corrupto do partido azul, do político corrupto do partido vermelho, do ciclista atropelado pelo taxista filho da puta. Um mundo caótico, de causas defendidas cegamente sem que sequer se tome partido de onde saiu aquilo tudo: o cara realmente desapareceu? A mulher/perua/vaca não teria tomado uma fechada de algum playboy? Partidarismo… sério mesmo, a essa altura do campeonato? O tal ciclista prestou atenção ao semáforo? Ninguém sabe, mas todo mundo opina e defende a causa com sangue e ódio a quem se opõe. Sem apontar culpados, o exercício aqui é o da hipótese. E ela sempre existe no plural.

Assim, vamos vivendo. Dando importância absurda a causas que não são nossas. O que nos caberia, pra falar bem a verdade, é simplesmente nos esforçarmos em sermos bons, e aprendermos com os contextos:

– Meu time perdeu? Aspirina e fones de ouvido pro dia seguinte…
– Meu time ganhou? Vou cornetar geral, dar risada e beber com todo mundo no fim de tarde!
– Vou ajudar sim – quem eu conheço, ou quem notoriamente precisa.
– Se eu não concordo, eu argumento. Berrar dá uma dor de garganta do cão.
– O porteiro merece atenção. A faxineira também. Tá todo mundo trabalhando.

Fazer parte daquilo que é seu, e saber que não se resolve nada reclamando, desmerecendo e humilhando quem não está na mesma estrada, na mesma direção ou com o mesmo pensamento que você. No dia em que a gente aprender a viver e conviver com as diferenças (sejam elas futebolísticas, religiosas, políticas, sexuais e o escambau), talvez possamos nos tornar aptos a discuti-las. Até lá, essa enxurrada de intolerância e ignorância sem fundamento vai infestar nossos cotidianos. E não será contra-atacando que a gente vai chegar a um lugar melhor. Sejamos sensatos (e bem-humorados, quando for o caso – e normalmente é).

A gente está se especializando em complicar tudo. Até futebol.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.