A tal Virada Cultural

Nós, que vivemos seguramente dentro da nossa caverna, aqui nos arredores da Vila Sônia, resolvemos tomar coragem, abrir mão do edredon, do tapete felpudo e dos DVDs pendentes, e encarar o show do George Clinton na madrugada de sábado pra domingo nessa nona edição da Virada Cultural de São Paulo.

O casamento nos deu uma razoável preguiça social. Doença pré-existente, que já limitava a poucos os convidados de nossos pontuais eventos, mas que se agravou com minha reclusão profissional (e o convívio extensivo dela com uma galera que dispensa comentários, tal o nível das papagaiadas que a Dé é obrigada a aturar diariamente). Sendo assim, topar a Virada nos deixou com um sentimento engraçadíssimo de… desconforto. Sair de casa tornou-se uma aventura aos trintões reclusos, mas mesmo assim topamos a empreitada (a qual custo, caberiam outros inúmeros parágrafos, mas vamos manter o foco, porque o assunto e o relato são extensos).

Deixamos o carro em casa (sensatez não tem idade), e fomos de ônibus até a Paulista. O show seria às 3h e saímos de casa por volta das 22h30 – antes do sono bater e o desânimo vencer. Descemos na esquina com a Consolação e andamos pela avenida, procurando um canto pra primeira cerveja e alguma coisa pra preencher o estômago. Estava esvaziada a velha conhecida, que por tantas vezes nos serviu de destino quase que por inércia. Sabíamos a quantidade de bares (todos) que frequentamos (muito) por lá e seus arredores. Há tempos não nos arriscávamos pelas bandas, e esse saudosismo só deixou a experiência toda com ares mais interessantes. Acabamos na ainda tímida fila do Black Dog, que assim como a Paulista, perdeu o brilho: o sanduíche diminuiu de tamanho, aumentou o preço, minguou o recheio, veio com dois guardanapinhos lindamente embalados e demorou uma vida pra ficar pronto. O que aconteceu com esse mundo pra ele se tornar tão politicamente correto? Até o sinônimo da ogrice desmedida e emporcalhada foi pelo ralo… e não que faça muita diferença nessa altura das nossas vidas, mas entre as recordações despertadas durante o programa da noite, fazíamos de tudo pra melancolia não “chegar chegando” quando a conclusão sobre certas verdades era a de que havíamos vivido coisa melhor década antes. Com coragem e bucho cheio, fomos então pra estação Santa Cecília – a mais próxima dos dois palcos que iríamos: o Júlio Prestes, e a Pista Princesa Isabel.

Quanto ao palco trance, a Dé pareceu curtir. Quanto ao show do show do George Clinton, excelente. Mas creio que essa seja a menos importante das discussões. Pra quem nunca tinha encarado a madrugada (e a Virada, própriamente dita), preciso ser claro: não é mole.

As dificuldades e problemas da cidade não desaparecem durante o evento. Sim, é fato – seria muita ingenuidade imaginar que a cidade propiciaria “espasmos paradisíacos” nessas horas, e tudo seria perfeito. O ponto a ser discutido é o que ocorre: o oposto, aquilo que já é evidentemente problemático, se agrava a níveis bizarros. Passear pelo Centro é uma aventura – eu já trabalhei no Viaduto do Chá, e sei o quão apaixonante e desafiador é se ambientar com o caos estabelecido diariamente naquele lugar. À noite, como em qualquer lugar, as coisas tomam novas formas. E damos uma pausa na conversa.

O evento tem como mote principal o desenvolvimento cultural, por trocentos e diversos meios. Assim, o mais provável dos primeiros motivos para que as pessoas o frequentem seja justamente o de assistir um show, um filme, um espetáculo (ou vários deles), dada a riqueza de variedades que a cidade é capaz de propiciar. A programação da Virada deixa isso muito claro – a ponto de termos ido assistir a um show de funk, e (a Dé) dançar num espaço de trance. Eu, roqueiro assumido, procurei mas não encontrei “nada pra mim” dessa vez. Poderíamos ter feito outra tonelada de coisas, se nossa saúde e disposição permitissem. Pausa feita, voltemos.

Havia policiamento perto dos palcos, havia alguma organização. E obviamente, haviam milhares de pessoas. Independentemente daquilo que cada um se preste a fazer num evento – ainda mais num que é gratuito, foi muito difícil relaxar e curtir num contexto notoriamente perigoso (não pouco, mas muito): as vias de acesso eram totalmente obscuras, quase nenhuma sinalização que não fosse pelo som vindo dos palcos, e praticamente ninguém preparado para dar um suporte a algum perdido/turista que surgisse (quantas não são as pessoas que moram por toda a vida em SP e não sabem onde fica tal rua em tal bairro?). Contar com o bom senso de que quem se mete num negócio desses vá preparado pra saber onde fica cada coisa equivale a imaginar que os que vão aos shows estejam todos cheios de boas intenções e prontos para adquirir cultura por 24 horas, e somente isso.

“Não tem mais bobo no futebol”, Galvão.

Vale lembrar que a tal Virada Cultural não é um “presente” oferecido à população, mas sim um evento organizado pelo governo, e pago com nossos impostos – impostos esses que somam o valor integral de 5 dos 13 salários pagos anualmente pelo trabalhador registrado. E como todo evento que se preze, necessita de um mínimo de infraestrutura, equipes (técnicas, de segurança e auxílio) minimamente capacitadas pra atender e oferecer à população aquilo a que se presta a tal data: entretenimento, cultura e segurança. Se o transporte vai virar a madrugada, que seja suficiente e bem-feito; se existem caminhos a serem percorridos, que sejam sinalizados, bem iluminados e seguros; se é algo pra toda a família (e leia-se família não somente um casal de 30 anos, mas crianças, velhinhos, pessoas com necessidades especiais de acesso e locomoção), que seja respeitado o bom senso – para que as pessoas sejam respeitadas em paralelo. ÓBVIO que pra que isso funcione, se exige educação de quem participa – e pelo menos por aqui, exigir algo dessa natureza de alguém equivale a pedir para que o porteiro do prédio te atenda em russo. Porém, isso não isenta a organização de fazer a sua parte. E ela não fez.

O que se viu enquanto estivemos lá foi um festival de nóias proliferados aos montes, fazendo merda atrás de merda. Minha amiga apelidou prévia, justa e cinicamente o horário de Walking Dead. Durante o dia de hoje, vimos que alguns arrastões, trocentos assaltos e duas mortes* aconteceram nessas 24 horas. Não surpreende. Li numa postagem replicada por alguns amigos que o Gilberto Dimenstein escreveu que:

“Está aí exatamente o nosso maior desafio: ocupar as ruas, com todos o seus riscos, para que não sejam o território do medo. Trazer multidões para as ruas é um misto de ousadia e ato de simbólico de resistência contra a barbárie. Não podemos ficar reféns do medo. Precisamos exigir não só cada vez mais segurança, mas sobretudo mais educação e cultura – aqui está a verdadeira segurança nas ruas. Perdi o celular. Mas como confio no poder da educação, não perdi a esperança.”

Me desculpem, mas eu discordo. Não dá pra chamar de ousadia você botar a cara na rua e de repente receber um tiro ou uma facada por causa de um celular, uma carteira, por ter pisado no pé de alguém, ou às vezes por nada (não se sabe qual mal se faz a quem não está num mesmo universo que você naquele momento) – isso não é ousadia, é burrice. Não podemos ficar reféns do medo, mas estamos. Talvez seja fácil ter esperança quando tudo o que se perde é um celular, e não um filho. Contra isso, a tal mobilização de milhares pela cultura, sem esperar um chamado, uma data e um local dos mesmos governantes que não te propiciam o bem-estar que você paga pra ter, mas que no fim das contas patrocina a violência, a desigualdade social e a criminalização de quem não tem acesso a absolutamente nada. Não é simplesmente ter esperança, muito menos cantar uma música pra obter a carteira de volta, mas oferecer saídas reais e com o imediatismo que a situação da cidade (não só dela, mas nesse caso) exige. Poesia e seriedade têm andado cada vez mais distantes, mas vêm sendo confundidas quase todo o tempo.

Sim, eu me sinto ameaçado quando um vulto esbarra na minha esposa, e torço pra que o esbarrão tenha sido só de corpo, e não uma violência que a tire de mim. E sim, talvez a culpa disso seja minha, por ter aceitado minha ilha de conforto ao invés de “abraçar a cidade” (alguns termos românticos da moda se tornam ridículos na iminência de um risco real). Mas quando você nota que nada muda – e é um prefeito num primeiro mandato, que poderia perfeitamente aprender com lições anteriores e investir um pouco mais numa proposta que, se verdadeira algum dia, pode iniciar um processo de evolução de consciência quanto à cidadania que meia dúzia de nós possui, e 99% passa longe na maior parte do tempo, que desperdiça uma oportunidade dessas pra dar um passo importante para o povo e a cidade, desanima. É justa a afirmação da rua enquanto espaço público, assim como é justa a reivindicação por punição para quem lesa, liberdade pra quem se expressa, e retorno pra quem contribui. Num mundo perfeito, é assim que funciona. Mas não está funcionando.

Todos esses assuntos relacionados têm sempre uma solução comum a longo prazo: a tal educação. E parece que sempre que o veredicto é esse, a preguiça por cobranças para um início (real, que não significa construir escolas – elas nunca são construídas) e desenvolvimento (de um pensamento sobre os valores pessoais, de sociedade, e de um coletivo que inclui aqueles que você jamais viu na vida, mas que vivem no mesmo mundo que você e às vezes lavam sua roupa, fazem seu pão ou limpam o chão que você pisa) desse processo que só vai desencadear uma geração com a devida consciência lá na frente – a minha já se perdeu – ganha a mesma força do que a nossa em sair de casa numa madrugada de sábado pra ir à Virada Cultural**.

*Quando a gente diz “duas mortes”, as pessoas sequer tomam conhecimento hoje em dia, tal a banalização da coisa. Mas talvez valha a reavaliação se você, pessoa insistente que leu esse texto até o fim, substituir duas pessoas próximas a você num cenário desses, e pensá-las mortas depois de um evento “cultural”. É, machuca.

**A iniciativa continua sendo excelente, e o evento absolutamente necessário para validar a cidade como centro de cultura e diversidade (ah, a diversidade que tanto incomoda…) do país. Mas repensar seu modelo é igualmente necessário.