Os braços abertos

Nesse final de semana São Paulo teve mais uma Virada Cultural, e a Neguinha* foi tocar por lá com o seu Samba de Bolso no evento. Eu nem sou chegado a samba, não preciso nem dizer. Mas ela canta bem demais, a música é boa, e a amizade transcende esses detalhes. Fomos. Chegando lá no centrão, paramos o carro por perto, e fomos nos informar com os policiais da redondeza onde ficava o tal “Palco Braços Abertos”.

– “É ali atrás, na Cracolândia”. – me respondeu a solícita e sorridente PM.

Bateu um frio na barriga. Óbvio, porque a gente – por mais distante que esteja, SABE o que é a Cracolândia**. Fomos andando, e chegamos ao pequeno palco, montado quase em cima da calçada de uma rua, que quando atravessada dava diretamente no bloco onde “os moradores do lugar” ficam zanzando. A gente realmente não sabia o que fazer. Éramos poucos ali, talvez uns 20 ou 30 visitantes, e o samba começando a rolar com a Neguinha toda sorridente e mais branca que geladeira (porque ela é assim, branquinha-branquinha mesmo), cantando sobre alegria e esperança.

Era muita informação. Eu confesso que por alguns minutos me perdi, pra tentar entender o que estava acontecendo. O frio na barriga virou coração apertado.

Esqueçam problemas técnicos, som pipocando, microfonia. Ao olhar pra trás, o que a gente via era um bloco de pessoas espremidas num quarteirão, sem rumo (literalmente, o “zanzar” é o verbo que melhor definia seu movimento). Alguns ficavam um pouco distantes da gente – éramos “as visitas”, num território que em nada conhecíamos – enquanto outros entraram no samba e foram ali pra frente, dançar e curtir aquele momento diferente. Me parecia um absurdo, até um certo exibicionismo dos responsáveis pela Virada “enfiar ali um palco”. Eu não entendia aquilo, mas nesse momento você entra em conflito com sua própria ignorância. Aquilo não é uma prisão, é uma rua. Aquelas pessoas são pessoas, como você, que vieram de uma mãe, de um pai, e que seguiram um curso infeliz demais, que desencadeou naquela coisa que eu não conseguia definir o que era. E elas estavam ali, pacíficas e alienadas, algumas completamente desconectadas daquele momento, outras se deixando divertir em cada música. Elas estavam ali porque elas não fazem parte de qualquer outro contexto – fosse por elas, fosse por aqueles que eram suas famílias, companheiros, amigos. Elas estão perdidas, e reunidas num lugar que a gente chama de Cracolândia, mas que é uma rua. Uma rua igual a tantas outras, em que tanta gente vive por aí, seja pelo motivo que for. E elas – ou algumas várias delas – estavam dançando. Elas pareciam um pouco mais felizes do quando a gente as vê na TV, com a cara pixelada e voz distorcida.

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Não sei se existe contexto, pois a cidade é a mesma, e achar que elas, ou o palco, ou a prefeitura, ou quem fosse “estava fora de contexto” foi minha primeira briga pessoal comigo mesmo. Perguntei se a Dé queria ir embora, e ela não queria, E nem eu queria, e cacete, não havia motivo pra ir embora dali, porque a realidade pode ser feia, cheirar mal, ser incompreensível, mas cacete, quanto disso também não é culpa minha por justamente me excluir de saber o que fazer com essas pessoas (e com todas as outras, quando a gente fala “da nossa comunidade“, “da nossa cidade“, “do nosso país“). O que é de fato esse “nosso“? Nosso é “aquilo que é de todos nós“, e as pessoas não se diferenciam quando falamos de todos, pois uma daquelas moças estava tentando ensinar a um de nós, “visitantes”, como sambar. Ali, na minha frente. Não havia nada de errado na alegria de ambas, por mais distantes que fossem as suas realidades. E eram MUITO distantes, acredite.

Foi aproximadamente uma hora de show. As músicas foram muito bem escolhidas, pra variar – a banda é ótima, a Neguinha nunca escolheria parceiros ruins com o talento que ela tem. Mas foi acima de tudo uma experiência aquilo tudo, que eu ainda não consigo entender. Ela me contou depois do show que aquilo faz parte de um projeto do governo que não fica só na Virada Cultural, mas cuja amplitude é bem maior. Eu fiquei feliz, preciso entender do quê se trata pra tentar limpar um pouco minha mente e talvez cultivar um pouco mais de esperança. É daquelas iniciativas que não geram votos, porque não nos atingem diretamente – afinal, se você está lendo esse texto de um blog, possivelmente sua vida não é baseada em crack – não existe wi-fi na Cracolândia. Mas são mais importantes do que novas estações de metrô, estádios de futebol, centros culturais. Não existe melhoria na mobilidade urbana, quando se tropeça em gente pelas sarjetas. Acho que as prioridades existem sim, mas antes de qualquer uma está a dignidade do ser humano (por mais difícil que seja pra gente enxergar isso – seja quando o trânsito pára, quando um aumento é anunciado, entre tantos abusos que tanto incomodam a gente antes desse negócio todo).

Mas lembro bem de todos os dias ler gente defendendo partido A ou B como se fosse partida de futebol. De descerem o pau em projetos que a gente mal sabe o que propõem. Eu não sei se o tal “Braços Abertos” já foi um dia chamado de “Bolsa Crack” ou coisa do tipo, mas acho que sim. Se foi, eu digo: que seja. Eu não sei se é o jeito certo, o jeito errado, mas alguém está fazendo alguma coisa. Aquelas pessoas precisam de ajuda. Elas precisam se sentir humanas, porque ninguém tem culpa de escolher o caminho errado. Eu já perdi gente muito próxima por causa de droga. Eu perdi um pai que priorizou o vício à própria saúde. Quem sou eu pra comparar minhas pontuais experiências de vida à realidade COTIDIANA daqueles adultos, crianças, velhinhos? As pessoas erram. Eu errei julgando aquelas pessoas e aquele lugar, que até agora não entendo como funciona e de que forma – então sim, eu também preciso de ajuda – uma ajuda que eu sou capaz de alcançar ME educando.

Eu não sei qual o tratamento que um dependente precisa. Eu acho que o mundo não precisa de manicômios, como a Beta fez questão de afirmar durante toda a semana num movimento que rolou no Rio durante esse fim de semana. Acho que um lugar chamado Cracolândia não devia existir sob nenhum contexto. E mais do que tudo: eu admito que sou (e sempre serei) muito ignorante, e que julgar qualquer coisa ou pessoa sem o mínimo de conhecimento é de uma leviandade absurda. É desumano. É burro. E eu sou tudo isso, quando faço e insisto numa posição que eu tive a felicidade de abrir mão ao ter um mínimo e distante contato com uma das coisas das quais tinha medo – e que a partir de agora, farão parte de um contexto que eu espero não mais esquecer. A gente é naturalmente ignorante, e por isso mesmo, toda informação sempre será pouca. Fechar juízo é desistir de pensar, e por muito tempo eu fui assim. Não sou (e não serei) mais.

Sei que vi gente que teve um mínimo de felicidade naquele intervalinho de tempo. Gente que pôde ser tão feliz quanto eu, mas que após a hora seguinte tomou pedrada de granizo na cabeça, enquanto eu estava abrigado no meu apartamento quentinho.

E isso não é um pensamento reconfortante, mas MUITO perturbador.

* Queria agradecer publicamente a você e a toda a tua banda, que me proporcionaram uma das experiências mais intensas que tive na vida. E espero que ela renda frutos na minha cabeça pra um futuro nem um pouco distante. Num mundo tão impessoal, eu preciso sim agradecer a quem é capaz de reumanizar as pessoas – e que abençoados vocês, que trouxeram um pouco de vida pra tanta gente ontem. Foi muito bonito mesmo.

** A Cracolândia é um lugar localizado entre a Alameda Dino Bueno e Rua Helvétia, no centrão, perto da Estação Júlio Prestes. E apesar do nome altamente pejorativo, é isso mesmo: um lugar onde ficam os dependentes de crack. Eu preferi usar o termo pra deixar claro onde e como estão as coisas ali, pois acho igualmente babaca você chamar um mendigo de morador de rua. É aliviar uma expressão que te dói o ouvido, por você, eu e todos nós termos responsabilidade direta em continuarmos marginalizando essas pessoas.

Dream A Little Dream Of Me

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Você é pequeno e não sabe o que quer da vida. Criança sonha, e quem não sonhou em ser alguma coisa diferente daquilo que é hoje? Obviamente, meu primeiro sonho não era ser desenhista, mas sim atacante do Corinthians, pra poder jogar com o Sócrates.

Porém, ser desenhista sempre foi opção E sonho. Que acabei correndo atrás, não porque quis, mas porque meus caminhos (que não serão descritos nesse pequeno texto) me trouxeram pra cá – inevitavelmente, o único lugar que eu em que me sinto plenamente confortável, realizado e feliz. Estabelecendo-se num lugar e numa posição, às vezes a gente sonha de novo. E eu sonhei.

Sonhei que um dia queria realizar 3 coisas, que aos olhos de muita gente podem parecer besteira: ilustrar uma capa de disco, um livro infantil e uma capa de livro. Nada de ficar famoso, encher o rabo de grana, sair por aí arrotando sucesso, e falando bem de tudo aquilo o que os outros mortais não viveram. Nada disso… a versão low profile é muito mais bacana. As coisas mundanas mais simples sempre acabam se mostrando mais significativas, e eu gosto muito dessa simplicidade. Três sonhos sim, razoavelmente ambiciosos, mas perfeitamente alcançáveis. Muito que bem.

Há um tempo eu realizei o primeiro, quando fiz a capa pro disco do Renato Godá. Não é “aquele artista” que participa do Domingão do Faustão, e isso não fez a menor diferença pra mim. Foram idas e vindas, se eu não me engano 8 ou 9 versões do mesmo desenho. É sempre assim, porque sim – a gente não acerta de primeira na vida, é uma lição universal (convenhamos: o Sócrates tinha o Palhinha, o Edmar, mas nunca fez um passe pro Masili – eu entendi o recado). A satisfação de entrar numa FNAC e pegar na mão o disco com a tua capa foi das coisas mais legais que já vivi. Meu pai ainda era vivo, eu dividi isso com ele também. Foi incrível.

Realizar um sonho é chegar lá. É ter mirado alguma coisa na vida, e acertado em cheio depois de suar pra descobrir e entender o caminho. Se a gente não sonha, se torna alguém vazio, sem propósito, personalidade, sem nada – e deve ser uma merda ser assim. Cada um sonha o que quer, e quem compra a briga sabe a recompensa que o espera.

Tudo isso pra enfim dizer que o segundo (e quase o terceiro – a capa é minha, mas com ressalvas, então ainda não considero esse sonho plenamente realizado simplesmente por ser um chato) são agora uma realidade também. Durante esse último mês estive envolvido num projeto delicioso, que com várias idas e vindas (e melhorias – é bom que se diga que nessa minha zona de conforto, quanto mais se desenha, mais se aprimora) tomou corpo e está em fase de finalização neste exato momento. Eu queria quantificar minha felicidade, mas faltariam tuppewares no mundo pra guardar tanta coisa, então é melhor espalhar por aí mesmo. Eu vou poder pegar um livro na mão, e ao olhar pros desenhos, falar “é meu”. Não dá pra descrever o quanto eu quis isso na vida.

E como toda corrida tem pódio e banho de champanhe, a festa pelo lançamento do “Dançando com o Inimigo” tem data e hora pra acontecer. Reservem seu 31 de maio – é um sábado, a partir das 16h. Dividir esse momento com o maior número de amigos e pessoas queridas possível só faz com que eu tente entender o quanto sonhar valeu a pena. Obviamente, quero mais livros e capas de discos (porque continuam sendo peças que dominam meu imaginário), mas que legal – preciso de novos sonhos agora 🙂

Dançando com o Inimigo
Estreia dia 31 de maio
Livraria da Vila
Alameda Lorena, 1731 – Jardim Paulista
A partir das 16h

Em breve tem evento no Facebook, e essas coisas modernas. Mas por enquanto, vamos comunicando por aqui mesmo. Qualquer mudança (de datas, horários, locais ou tudo junto) eu republico. Mas sim, apareçam. E é isso!

Vinte

“O Rubinho se arrebentou”.

Foi a primeira coisa que meu pai disse quando bateu à porta da casa do Kadu naquela tarde de sexta, antes de me levar pra casa (sim, era 1994 e eu vivia de caronas do meu pai). “Acho que foi feio, eu vi a imagem e o carro dele decolou”, e eu já fiquei doido pra ver o raio do acidente. Sim, já diz o Piquet que de fato a gente quer ver isso mesmo: carro pegando fogo, a coisa toda explodindo, essas coisas. Piquet sempre foi meu ídolo: ele sabe das coisas.

Veio o sábado.

Treinos classificatórios. O circuito de Ímola sempre teve ótimas corridas, um horário pra lá de acessível, a gente assistia treino e corrida do começo ao fim de olho escancarado – eu até mais que meu pai. Nessa época cada um já tinha uma TV em cada quarto: eu assistia no meu, ele no dele. E de repente aquele carro lilás com o logo da MTV (carro bonito do cão, um dos que eu mais gosto até hoje – mas o que tinha de bonito tinha de lento) aparece escorregando, já todo estourado. Close da câmera, o capacete branco do Ratzenberger cheio de sangue acima da viseira.

– Puta que pariu!

Eu nunca tinha visto morte na Formula 1. E não que não fosse da minha época, mas não transmitiam os treinos nos anos 80, quando o Elio De Angelis morreu em 86, e pra mim a competição daqueles dias era Piquet x Mansell e que se dane todo o resto. Mas tava na cara que tinha dado merda. Tiram o cara do carro, massagem cardíaca… morreu, puta que pariu.

Aquilo foi horrível. A tarde ficou ransa, porque sim, Formula 1 era um dos assuntos de casa em todo final de semana, e a gente tinha acabado de assistir a uma morte ao vivo. Não é legal… a gente gosta sim de ver a desgraceira, mas que os caras saiam de lá e façam mais e mais “o tal circo” acontecer. Um se arrebenta na sexta, um morre no sábado. “Esses caras deviam cancelar a corrida… imagina se morre um Senna da vida amanhã?” – Eu não sei quem falou, mas saiu.

E veio o domingo.

Eu no quarto, minha mãe na cozinha, meu pai no quarto dele. Começa a corrida e o JJ Lehto se arrebenta logo de cara. Bandeira amarela, bandeira verde, e em duas voltas é a vez do Senna.

– Bateu o Senna caralho!

Minha mãe corre pra ver. A cabeça mexe. Ele tá vivo. Ninguém chega. Tem sangue no chão. Sobem os panos. Fudeu, fudeu tudo. Cacete, só faltava essa, não é possível. E aumenta o som, e liga o rádio AM na Jovem Pan pra gente saber o que acontece, e passa o tempo e a tarde fica longa, tensa, inevitável – a gente ficou esperando a notícia que ninguém queria ouvir, mas a única que parecia possível.

Eu não chorei, mas fiquei mal. Aquela coisa de perder referência, um nome que você ouve desde sempre – e no meu caso, enfrentando Prost e Mansell, e brigando com o meu ídolo. O cara era bom pra cacete, mas nessa época existia essa rivalidade meio de futebol – aquelas coisas de torcer pra um e não torcer pra outro, pois os nossos eram de fato os melhores pilotos.

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Era época de ídolos nesse país. Longe dos santos, dos imaculados, daqueles acima do bem e do mal. Mas sim, existia uma torcida e uma mobilização real quando aquele cara levantava o raio da bandeira na então “volta da consagração”, tema da vitória, essas coisas que hoje em dia parecem tão cafonas, mas que criaram uma geração de gente que acreditava que isso aqui tinha jeito. É engraçado olhar pra trás e enxergar as coisas dessa forma agora, 20 anos depois, entre GPs insossos do Bahrein e da China. As coisas pareciam mais reais, e dá uma baita saudade daquela que sem dúvida foi a melhor de todas as épocas da Formula 1. A morte do Ayrton interrompeu bruscamente um “mau hábito” que tínhamos, de sermos os melhores – desde a década de 70, com Emerson, e depois Piquet. Aí passamos a exigir o mesmo dos que vieram (e alguns compraram a responsabilidade, numa ingenuidade absurda), sendo que eram apenas normais, bons pilotos, como são até hoje os outros brasileiros que seguiram.

Aquele 1º de maio foi devastador. Mais do que dois pilotos, matou um pouco daquilo que a gente tinha enquanto parca noção de patriotismo. É muito difícil explicar pra quem chegou depois o tamanho de uma figura como a de Senna. Só sei que já se vão 20 anos, e eu sou capaz de lembrar de minutos daquele final de semana como se tivessem acontecido ontem, e isso não é pouca coisa.

Não, saudade não é bom

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Minha mãe está indo morar em Joinville, sexta agora.

Do susto da notícia repentina à mudança, foram-se aproximadamente 40 dias, e eu confesso: é um tempo muito curto para uma digestão bem-feita de um acontecimento tão diretamente relacionado à minha vida. Sim, minha mãe é a única família que me restou por perto, e agora eu passo a ser o único Masili em São Paulo. Ela vai morar com meu irmão, a cunhada e a sobrinha.

Obviamente, eu não gostei. Não sou hipócrita.

Porque com ela, vai-se a espontaneidade de “tive um dia de merda, vamos tomar uma cerveja mais tarde?“, “comprei uma carne e o almoço está cheiroso, quer vir fazer um prato?“, “quer vir ver o que aconteceu com o meu computador, que ele tá esquisito?“. Minha mãe é de longe a pessoa com quem mais tive afinidade quando ainda éramos quatro. Depois da aborrecência, onde todos queremos distância dos nossos pais, foi ela quem topou em um sábado de manhã sair de casa e comprar ingresso de cambista pra assistir ao Elton John, naquele que foi o primeiro show da vida dela; foi ela que num aniversário que fiz, já meio alta com as cervejas da tarde, topou carregar uma mochila nas costas e encarar Perú e Bolívia naquela que foi a maior aventura das nossas vidas até então (sim, depois do Monte Roraima, creio que essa viagem caiu pro segundo posto até o momento, e essa a velha não aguentaria); e principalmente: ela foi a primeira e única daquela casa a conversar de igual pra igual sem medo de mudar de opinião, pedir desculpas ou dar a mão à palmatória em caso de cagadas. Eu sempre tive mãe, mas posso dizer sem a menor sombra de dúvida: nela sempre esteve minha melhor amiga.

Então sim, eu estou me sentindo bem sozinho e estranho nessa condição de pessoa que fica. A distância de 5,5 km entre nossas casas vai aumentar de uma forma absurda, a ponto de serem raros os abraços (por mais que ela diga que não – eu tenho minhas convicções, e espero estar errado sobre elas, mas enquanto não mudo de opinião são essas as minhas palavras). É uma merda. É uma absoluta merda mole de vaca isso. Algumas pessoas dizem que saudade é bom. Não é. Bom é estar perto de quem a gente ama, poder cismar ter um dia bom, e tê-lo. Eu acho ótimo que minha sobrinha possa aproveitar a avó daqui em diante, mas estou abrindo um pequeno espaço e me dando o direito de ser egoísta por alguns segundos – eu não sei sorrir amarelo, me perdoem.

E com ela, vai também a Pimpolhinha – a cachorrinha que há algumas semanas ilustrou constantemente meu facebook (enquanto a véia estava por lá, pesquisando apartamento). Quem tem ou já teve cachorro sabe o quanto eles se tornam família, e o quanto a gente se apega. Eu já tive dois, mas era criança demais quando tivemos que doá-los. Na época, dividi o sentimento de perda com a empolgação da mudança – de Santo Amaro pro Taboão. Dessa vez não há divisões, e é outra merda, gigantesca.

Eu não vim aqui recomendar nada, muito menos dizer nada além dessas linhas. Aquilo que preciso dizer pra Paquinha já é dito pessoalmente, como sempre foi. Eu torço pra que tudo dê certo, pra que ela encontre mais felicidade ainda na própria vida, e que aprenda a cuidar de si, por si – coisa que ela faz, mas não tão bem assim. De resto, quis deixar umas linhas… talvez de desabafo, porque é muito complicado lidar com uma situação tão determinante e grande na minha própria vida no mais absoluto silêncio. Mas é o que eu devo fazer, e é o que eu tenho de momento.

Ainda tenho três dias com você (espero). Que por favor, a gente aproveite.

No mais, você nunca será visita, véia. Sua casa permanece de portas e braços abertos. Eu duvido que você volte a viver nela, mas as visitas são obrigatórias, necessárias e determinantes pra que os que ficam permaneçam felizes – mesmo que absoluta e profundamente saudosos. E é melhor eu parar de escrever porque tá foda.

Eu amo muito você. Se cuida.

A caneca

Por um acaso do destino (e o destino tem umas tiradas completamente ridículas), a tua caneca veio parar aqui em casa. Aquela, de um restaurante que nunca fui, eternamente congelada e raramente usada que habitava a geladeira da nossa casa lá em Santo Amaro, depois a do Taboão, e agora tá aqui, na Vila Sônia (quem merece chamar esse lugar de Jardim Monte Kemel, afinal de contas?).

Obviamente o acaso quis que isso acontecesse a dois dias do seu aniversário. Pra mim, um dos objetos mitológicos, que eu jamais imaginei em outras mãos – as minhas inclusive – mesmo que você não fizesse uso da dita. No que se diz respeito a goles e bebidas, eu me lembro daqueles copos de cristal, que tinham um trabalho semelhante a pequenas folhas, que davam a graça ao teu whiskey quando vez ou outra este saía da adega. Por sinal, criei meu próprio ritual com os copinhos que ganhei da Mel – dois da viagem que fizemos em quatro pro Perú e pra Bolívia, e mais três da incursão européia da moça (que você não conheceu, mas adoraria – temos alguns bons novos amigos aqui). É um ritual sem gelo, com garrafas melhores que as tuas – não queria me gabar, uma delas ganhei de dois amigos da Dé, uma da própria Mel, e a primeira que inaugurou esse apartamento veio do Japa… só podia – e coitado, me forneceu o combustível auxiliar pra assistir ao primeiro título da Libertadores do meu time sem saber. Como a Dé não bebe o danado, eu faço as vezes direitinho.

Logicamente não se toma whiskey naquela caneca, a não ser que o irresponsável por tal ato queira se esborrachar no chão ao levantar da cadeira. Mas eu pensei em estreá-la hoje, com meu presente de Natal (também dado pela Mel… pessoas etílicas dão presentes etílicos a amigos etílicos). Ou talvez reestreá-la, uma vez que ela é e sempre será tua. Uma daquelas cervejas chiques, rolha no lugar de tampa, essas coisas que hoje em dia nego sai por aí ostentando, mas que nas poucas vezes que me arrisco tento fazer valer o momento. Acho apropriado.

Voltei pra casa depois do show do Hugh Laurie nesse domingo, após levar minha mãe de volta (a véia estava radiante… pulou, cantou e dançou de um jeito que você deveria ter se permitido ver por tantas vezes) e de lá trazer a tal caneca. Engraçado isso… voltei com a caneca, uns queijinhos, um pote de mel e um monitor-monstro que herdei da velha. Sim, estou ficando velho… preciso de telas maiores e óculos quase o tempo todo, por mais que eu ainda renegue tal necessidade. E além disso tudo, peguei a tal caneca. Botei tudo no banco do passageiro e vim pra casa tomando todo o cuidado do mundo – como se carregasse cristal. Porém, o cuidado e os dedos em nada tinham a ver com o monitor ou as comidas. O raio da caneca não podia quebrar, e não quebrou.

Fiquei tentando lembrar quais outras coisas te trariam aqui pra dentro de alguma forma. Não lembrei de nada. Aquela marreta horrorosa que você carregava no carro, a caixa de ferramentas caótica e que pesava mais do que zoação de sãopaulino, os vários vinis do Ray Conniff… nada disso me encantou, nunca. Pensando bem, você nunca foi um cara de grandes ostentações: um puta relógio, um óculos assim/assado, discos e livros raros, essas coisas que a gente vivia exibindo por aí antes da chegada do iPhone, quando “ter” passou a “significar” definitivamente.

Mas a tal caneca… era quase imaculada, e de repente, aqui está ela.

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Então, se o acaso quis assim, eu prometo com todo o cuidado do mundo sujá-la de modo a honrar todo o imaginário que existiu na minha cabeça quando a vi pela primeira vez entre os potes de sorvete (ou de feijão, nunca saberemos). Espero que aí onde você está existam coisas condizentes pra se comemorar uma data como essa. Prefiro abril a agosto, a data sempre é mais gostosa, mesmo que pouco ou raramente comemorada como se deve – por sinal, queria saber de onde tirei o gosto pela bagunça, numa família em que pouco ou quase nada se comemora… tremenda besteira essa: todo motivo é motivo pra gente abraçar quem ama, encontrar quem não vê, lembrar de quem faz falta.

Eu não esqueço. E agora, a cada vez que eu abrir o MEU congelador, procurando sorvete (e encontrando feijão), poderei dar um sorriso de canto de boca. De certa forma, posso estender a mão e alcançar você, mesmo que seja pra um breve e estúpido gole gelado. É uma lembrança boa. Acho que é a lembrança que você merece.

Te amo velhão. Feliz aniversário.

4

Eu lembro bem da noite anterior. Da gente se encontrando na casa da sogra, pra em seguida dar uma olhada no salão de festas do condomínio, onde ocorreria a “cerimônia” (sim, entre aspas mesmo… a gente fez um negocinho tão intimista que chamar de cerimônia é quase promover o evento). Aquele teto preto, aquelas poltronas arregaçadas, e a gente saiu de lá fazendo votos de que tudo daria certo no dia seguinte – mas ambos duvidando daquilo que diziam – aparentemente concordávamos implicitamente que nosso casamento tinha tudo pra dar errado. Bom, a “cerimônia” pelo menos.

Mas aconteceu, mesmo assim. E no dia seguinte – há exatos quatro anos do dia de hoje – chovia copiosamente. Eu, mais preocupado que tudo desse certo do que com o que de fato aconteceria, lembro bem de estar uma pilha de nervos. Lembro de agradecer copiosamente ao milagre que a Agnes operou, ao transformar aquele salão tenebroso em algo agradável pra uma manhã cinzenta de sábado; de ficar feliz com os amigos ali tão cedo; do bolo derrapar mas não cair, quando da chegada da minha mãe ao salão; das coisas darem certo, mesmo dando errado; e da pequena subir a escada tão linda e sorridente naquele dia.

Lembro bem de ter beijado a noiva antes de começarem qualquer coisa; de ter sorrido sem medo com as brincadeiras do bispo; de ter tentado à exaustão me controlar pra não chorar durante a cerimônia, e de ter falhado miseravelmente nessa missão, ao ouvir as palavras que a Dé escreveu pra mim; de achar que poderia ter escrito votos melhores e mais marcantes, mas saber que a exaustão daquele momento minara qualquer tipo de criatividade que eu pudesse ter em dias tão conturbados e difíceis; de ter errado a mão da aliança (e ter sabido rir da minha própria presepada); de ter visto as mães e a cunhada chorando; de ter cumprimentado muita gente, mas não lembrar de nada especificamente, pois era gente demais, coração demais, coisa demais e aquilo parecia difícil pra quem estava tão cansado. Lembro bem do cansaço, esse que acompanhou a gente nesse verdadeiro rally que foi conciliar festas (sim, sempre lembrando que foram duas, e não só uma), compra de apartamento, lista de casamento, mudança de endereço, greve bancária e emoções à flor da pele.

Lembro de não ter imaginado como isso tudo seria. Lembro de hoje a gente fazer 4 anos de mesmo teto, mesma cama, mesma pia, mesmo controle remoto, mesmo varal. A gente nunca se esforçou pra fazer dar certo, porque simplesmente deu. Hoje não tem nada programado, mas será especial como sempre. Eu não lembro bem como era a vida sem você do meu lado, e acho que é bem por aí mesmo… a gente deixa pra trás o que dá errado, pra se preocupar dali em diante com o que dá certo.

A gente deu, e oliamo. Felizes e múltiplos 4 anos, pequenininha.

Sem surpresas

O que aconteceu ontem foi realmente lamentável.

A absolvição do Genoíno, da forma como aconteceu, assim como a dos outros mensaleiros foi uma das maiores sem-vergonhices já registradas nesse país, é fato. Porém, o que eu vou escrever aqui é algo que vem povoando minha cabeça nessas últimas semanas, e que ontem provou-se uma verdade – e não uma ideia ou um pensamento – pra mim (e repito veementemente o “pra mim”, uma vez que não estou aqui pra apontar minhas verdades na cara de ninguém – um expediente que anda cada vez mais em moda por aí e que tem tornado as pessoas cada vez mais chatas):

Não há nada de novo acontecendo.

Pode parecer ridículo dizer uma coisa dessas, mas é uma constatação que eu vou tentar fundamentar nas próximas linhas. O que me parece é que a despolarização da mídia, a facilidade da informação (e suas eventuais distorções) e um interesse maior de cada um em se fazer ouvir causou um verdadeiro tsunami de informações sobre qualquer coisa – inclusive sob política, pois – quem diria? – é um expediente que faz parte das nossas vidas, tanto quanto futebol, vida amorosa e sexual, novela, música e BBB.

A informação de hoje chega de várias fontes, muito diferentes das de 10, 20 anos atrás, e completamente diferentes de antes disso. Existem outros interesses, outros pontos de vista, outras defesas e ataques, e por fim tudo isso ganha destaque parecido – sem o afunilar que antes existia (e ainda existe) na mídia de massa. Nesse novo momento do mundo, em que a TV, o rádio e a mídia impressa perderam espaço, e hoje dividem importância com os canais digitais, a goteira virou inundação.

Mas nada mudou.

Historicamente nós sabemos que esse mesmo país e sua política que absolveu o Zé Dirceu já matou e exilou muita gente (inclusive o próprio Dirceu) durante o regime militar; que em sua emissora de TV mais proeminente manipulou a edição de um debate para a vitória de determinado candidato em suas primeiras eleições presidenciais democráticas; que numa clara jogada populista, fez de tudo para depor o mesmo em seguida; que não é capaz de lidar com a liberdade de expressão popular sem o uso da força e dos resquícios daquela mesma ditadura em suas políticas; que permite que sua máquina eleitoral continue funcionando em prol da polarização de forças entre partido A e partido B, não permitindo a equalização de espaços para novas vias; e sobretudo: que não sabe lidar com a informação (seja de onde for) sem repressão, burocracia e desinteresse no real esclarecimento.

O povo brasileiro não discute política, simplesmente porque não sabe como fazê-lo (assim como acontece com tantos outros assuntos – senão todos). É uma nação de ignorantes sim, não é radicalizar opinião nem apontar dedo: nós não temos estudo, não temos cultura e discriminamos por inércia quem nos é diferente (e não me venham com aquele papo de “herança cultural” – é sabido há décadas que somos assim, assim como o funcionamento teoria da evolução – não é nenhum absurdo qquerermos que ambos em conjunto tragam alguma mudança). Os que pouco sabem sobre qualquer assunto parecem inalcançáveis e senhores da verdade, por mais absurdas que sejam suas opiniões (e ocasionais torcidas, que por vezes extrapolam os limites da razão em prol de determinada bandeira). Somos capazes de exaltar o linchamento de uma pessoa pelo simples prazer de um sentimento (absurdo) de “justiça”. Somos desumanos porque aprendemos – inclusive pela própria forma de se fazer política no país – que o importante é vencer aquele que tem opinião diferente da sua, ao invés de dialogar e entender o que de fato é essencial para o bem comum – e nem sempre é aquilo que nos satisfaz individualmente.

Isso não vem de agora. Sempre foi assim. E não há esperança em mudanças.

Porque não sabemos como fazê-las. Porque quando tentamos fazer alguma coisa, “é de cunho político”, ou somos chamados imediatamente de baderneiros, de vagabundos e coisa parecida. Somos oprimidos com a iminente violência opressora – a mesma que está aqui desde a ditadura, que nunca deixou de existir pra quem é pobre (sim, parece novidade, mas não é – nunca foi). Porque enquanto ficarmos defendendo a reação pela consequência – e não a cura pela causa – continuaremos dando murro em ponta de faca e falando besteira. Ontem mesmo eu conversava com uma amiga sobre o que é possível ser feito num cenário desses. A curto prazo, ambos não soubemos responder, porque o cenário torna quase impossível uma resposta imediata (e digo “quase” por não saber como, mas quem sabe você não tem a solução para essa nossa dúvida?) a esse cenário.

Me ocorre somente estudar. Pra entender. E quem sabe, encontrar a resposta.

Eu não sei discutir política. Não cresci discutindo como funciona a máquina democrática (de lugar nenhum, muito menos do meu país). Estou com 34 anos, e completamente desiludido com o rumo que as coisas tomam. Vejo amigos meus escrevendo e divulgando cada absurdo por aí que a minha vontade é sair dando tapa na cara de geral – mas eu seria autoritário e burro, assim como eles estão sendo ao tomar pra si essa briga estúpida, que só beneficia a quem já está lá, rindo da nossa cara. Mas conversar é bom. Sobre futebol, novela, BBB, música, e sobre política – sim, porque eu sei que apesar das opiniões diversas, o sentimento de desilusão é o mesmo. Hoje, aflorado pelos abusos fartamente divulgados aos quatro cantos, e que bom que temos acesso a tudo isso. E acho que posso dizer que prefiro ser um ignorante com possibilidade e raio de ação ao aprendizado de hoje, do que o ignorante que se achava esclarecido e que cresceu sob 3 ou 4 veículos de mídia que só divulgavam aquilo que lhes era de interesse. A reação contra qualquer cenário de desolação e desesperança é encontrar um chão firme pra pisar, e começar passo a passo a ir contra o que te massacra.

Somos sim capazes. Mas somos igualmente comodistas e preguiçosos se imaginamos que algo seja capaz de mudar somente pelos braços de outras pessoas. A capacidade de pensar é igual para a grande maioria das pessoas, e se negar a exercitar tamanha dádiva é tão condenável quanto qualquer manobra política pela impunidade. Somos cúmplices se não nos prontificamos a tentar (por mais difícil que seja) encontrar um caminho, uma nova via, uma possibilidade de mobilização que atinja diretamente essa corja de salafrários. Se será agora, daqui a um, cinco ou dez anos, não importa. As crianças estão aí, e nossa função (da minha geração em especial, que já está sendo ultrapassada por uma nova) é trazer a quem chegou o esclarecimento necessário para a compreensão da importância de saber o quê e como fazer. Política é chato sim, se a gente continuar a levar o assunto como um tabu, ou ainda bandeirar sobre ideologias que notoriamente não existem no Brasil. É fato: temos aqui uma briga pelo poder, e só isso.

Qualquer coisa (ideia, mobilização, reivindicação ou o que seja) que envolva o bem comum já será uma novidade. E não é isso o que de fato nos interessa?

Gera gentileza

1) O bar convidativo e gostoso, de meio de bairro, sem invasão de flanelinhas, vendedores de sândalo e paninhos de prato é perfeito. Mesas na calçada, você esquece da hora, do check-in no foursquare, da paranoia do estacionamento – afinal, ali está o meio-fio, sem a famigerada zona azul, sem estacionamentos privados que cobram mais caro que cerveja importada. E depois de algumas horas, pouco antes de ir embora, ao pagar a conta no balcão, o dono do estabelecimento (que você já conhece pelo nome, e qual a novidade? chama-se Zé) te oferece uns pedaços de chocolate que estavam depositados naquele enorme pote plástico ao lado. De graça. “Pra ajudar a voltar pro prumo sem ressaca, sabe?”

2) Você pede a pizza, sempre pela internet, vez ou outra por telefone. Ela sempre chega bonita, pesada, gostosa. Às vezes atrasa um pouco, mas quem não atrasa nessa cidade? Não é motivo pra ligar pagando geral e mandando praquele lugar quem por azar atender o telefone. E eis que um dia você resolve variar um pouco, e ao digitar o pedido resolve que dessa vez a cebola fica (por mim, ela sempre ficaria, mas o paladar aqui de casa não é só meu). E ao enviar o pedido, os caras da pizzaria te ligam em seguida, “pra ver se é isso mesmo ou se você não errou, já que a gente tá acostumado aos pedidos de vocês e a pizza sempre é sem cebola“.

3) Fim de tarde, a gente resolve descer a rua e encontra numa viela aqui perto um restaurante de um senhor simpático, de bigode vistoso. Encostamos o carro (na rua, sempre na rua), atravessamos e somos recebidos com um abraço de boas-vindas. “Digam onde vocês querem sentar que eu monto a mesa pra vocês“, ele diz ainda (e sempre) sorrindo. Na indecisão da Dé, ele emenda “algo no meu coração diz que se você sentar ali, vai gostar mais“. Contra coração a gente não argumenta: obedece. E é feliz, obviamente. Ele volta a conversar com o pessoal da mesa da calçada, e a gente é atendido por outro rapaz, garçom do lugar, que explica cada coisa do cardápio “fofinho“. Desistimos de pedir. “Traga o que você quiser“, e o rapaz não decepciona. No meio disso, enquanto a gente aguardava a segunda rodada de pratos, o senhor sorridente encosta na mesa, com um pratinho de dois kibes, me entrega e completa com “eram os últimos, acabaram de sair e te trouxe só por causa da sua camisa (do Corinthians, óbvio), porque ela me emociona só de olhar“. Fomos mimados, entupidos de uma comida absurdamente saborosa “e fofa“, e quando achávamos que nada mais cabia, veio a sobremesa. E não sobrou nada. “Vocês vão ter que voltar, porque ficamos devendo o café“. A gente volta, claro que volta. Na saída, minha mãe chama o bigodudo: “Posso dar um abraço no senhor?” – “Eu que ia pedir o seu abraço!“, e a gente fecha a noite dessa forma, quase emocionado.

E antes que você me diga qualquer coisa sobre “técnicas de venda“, “eles precisam servir bem pra sobreviver e continuar no mercado” e outros argumentos céticos, eu já deixo respondido: sim, é possível – mas tem algo a mais aí. E esse algo a mais aparentemente é a sinceridade, e o gosto em fazer as coisas de um jeito bem-feito. Coincidentemente, são 3 exemplos culinários/etílicos, mas existem outros vários aqui no bairro: o santista dono da adega que empresta garrafa de vidro e nunca mais pede de volta, o mecânico que arruma teu carro e te pede pra dar uma volta sem exigir que você deixe pagamento, identidade ou qualquer outra garantia, a dona do mercadinho que num dia mais calmo te pára durante o pacote pra contar que cursou desenho industrial, mas que agora estava pensando em fazer gastronomia, “porque ter um diploma na parede deve ser uma sensação muito realizadora“, o açougueiro que sempre faz a mesma piada depois de falar do Coringão, ou ainda o porteiro que no sol ou na chuva sai da cabine pra bater três minutos de papo contigo sobre qualquer coisa: pergunta se o joelho tá melhor, que o calor não cessa, que tá tudo tranquilo com ele e essas coisas.

E depois dessas pessoas, é muito difícil você continuar irritado, ou tenso, ou desiludido. É muito fácil você dar passagem, sorrir no semáforo, agradecer ou desejar um bom dia. Isso contamina, mas a gente às vezes se sente bobo por estar feliz em meio à sisudez do mundo. Uma culpa burra, desnecessária, e que faz com que os bons momentos sejam tão especiais que pareçam irreais. Não são. Essa é a real força transformadora, a coisa que a gente busca pro mundo, os reais instrumentos pra uma vida melhor. A gente cruza com eles, todos os dias, em exemplos triviais grande parte do tempo, e tão únicos às vezes que a gente nunca mais esquece. É estar consciente deles. Cultivá-los. Não negar o que nos trazem, e não se sentir idiota em passá-los adiante. Mesmo que não afetem a todos, nem sempre (porque sim, sempre existirá os que preferem o mau-humor, o smartphone, a reclamação constante, o “não fez nada mais que a obrigação“), não importa.

É fazendo o nosso que a gente vira coisa especial pros outros. E é bom demais saber que você é o motivo da alegria de alguém – seja esse alguém quem for.

P.S.: E não, não é um post patrocinado. Eu indico porque eu amo, e é um puta de um argumento válido (e suficiente) esse:

1) Bar Dona Ilda
Rua Guanás, 337

2) La Spezia Pizzaria
Rua Doutor Sílvio Dante Bertacchi, 485
(11) 3501-9719

3) Sainte Marie Gastronomia
Rua Dom João Batista da Costa, 70
(11) 3501-7552

Queimem as bruxas

No Rio, um grupo de “justiceiros” endinheirados prendem pelo pescoço um moleque com uma trava de bicicleta no poste, e o deixam lá, nu e humilhado madrugada adentro. Em São Paulo, 100 desocupados invadem um treino de futebol pra quebrar as pernas dos jogadores, e atropelam os funcionários do Clube que tentam defender os atletas e a si mesmos.

Virou isso, tá tudo perdido – e é esse o veredicto óbvio.

Porque na era do ataque gratuito e da opinião de bate-pronto, a gente já se posiciona de cara e acusa o moleque (?) que era assaltante e teve o que merecia, já que a polícia é apática e o governo inoperante, e o cidadão tem mais é que se defender mesmo.

ESPEREM UM POUCO. Estamos falando de queimar bruxas em praça pública, meus amigos. Da justiça pelas próprias mãos. Do cara que risca teu carro e que você enforca no primeiro poste que aparecer, ou da empregada que quebrou um prato e você foi lá e quebrou a mão da coitada, em represália. É isso mesmo? A gente condena as manifestações populares, se distancia cada vez mais da maioria dos brasileiros (que continuam sem acesso a coisa alguma, inclusive a esse texto, pra dizer o mínimo), e com nossos iPhones registramos a violência descabida, pra que com meia dúzia de palavrinhas escritas em Impact ela vire piadinha de Facebook? O cara que não tem educação, comida, acesso, que vai pro shopping e é perseguido pela polícia, que não tem direito a ouvir sua música, a andar livremente sem levar um enquadro… esse cara é o verdadeiro criminoso num país que não é capaz de condenar um engravatado, e cuja liberdade só existe pra que, entre outros absurdos, um político faça uma vaquinha via internet pra que paguem sua fiança, após ele ter enfiado a mão BEM FUNDO em todos os bolsos possíveis?

Façam-me o favor. É fácil tacar pedra no ladrão de galinha mesmo.

E antes que me venham (e se vierem, será de se lamentar) me acusar de defensor de bandido (!), a minha dúvida é se esse clamor e indignação é uma bandeira que todo brasileiro levanta por cada abuso e lesão que sofre, seja qual for: moral, fiscal, física, social e etc. Como funciona o seu conceito de justiça, meu amigo? Você realmente vê nesse país “um país de todos”? Ou acredita, desde que “todos” não sejam pretos, pobres e favelados?

De novo: pensem antes de sair por aí espinafrando o moleque. A Roseana vai concorrer ao Senado, o José acabou de sair da presidência de lá faz 4 dias, e vocês querem falar de justiça?

Porque “fazer justiça com as próprias mãos” é permitir com que aquele que discorda de você te repreenda da forma que bem entender. É deixar que cada um reaja conforme a própria consciência (sendo que cada vez mais poucos são os que a têm). É achar certo que um cara invada um lugar pra quebrar as pernas do outro, “porque os gols não saem” – e se você acha isso engraçado, que tal seu chefe entrar no escritório e quebrar seus dedos, porque as metas não foram alcançadas?

Não é demais lembrar o quão machista a nossa cabeça ainda é, achando que muito problema a gente resolve mesmo é na porrada. De quê adianta o discurso, se da porta pra dentro você ainda espera que sua esposa faça as “tarefas de casa”? Você fica indignado em receber ordens de uma moça? Faz piada com a “Dona Maria do Volante”? Que tipo de exemplo você acha que o mundo recebe quando tua cabeça continua funcionando no século passado, onde o sexo determinava (declaradamente, pois isso continua a acontecer de uma forma hipócrita e velada atualmente) se você seria mandante ou mandado? Esse pensamento contaminado continua vivo, latente e repulsivo – e nos exemplos que surgiram aqui (pinçados num universo de tantos outros) continua evidente a necessidade da provação de virilidade por meio da estupidez. É absolutamente lamentável.

Eu não sou um cara politizado, nem preciso dizer. Eu sou o cara que acompanha de longe e procura ler as coisas certas antes de sair por aí falando merda – e nem sempre sou bem-sucedido nisso. Mas não preciso de muita inteligência pra ver que a ignorância geral (inclusive de uma maioria muito bem educada e com poder aquisitivo) está tomando rumos absurdamente perigosos. Achar bacana prender um cara num poste, quebrar as pernas de outro e outros absurdos demonstra um total descompromisso com a sociedade; um egoísmo absurdo em não ser capaz de se colocar na posição de quem é atingido pela violência gratuita, física ou psicológica; uma total falta de noção em identificar racismo, machismo, homofobia e outros cânceres que passamos adiante como se fossem piada. Estamos totalmente alienados, e procurando respostas prontas pra coisas que não conseguimos entender. E não conseguimos por uma simples razão: é impossível racionalizar irracionalidade.

Não vai mudar nada se, antes de qualquer coisa, a gente não respirar antes de reagir A QUALQUER COISA. Eu sou cético quanto a grandes mudanças imediatas, mas não perco a fé nas pessoas – tanta luta por espaços públicos, a direitos iguais, a cumprimentos da justiça escrita desse país… sim, existe uma vertente boa, e ela não é necessariamente chata, intelectual ou o escambau – às vezes ela é só bem-intencionada, e se sente acuada em não se manifestar por medo (justo) de represálias cada vez mais agressivas e infelizes – as mesmas que me fazem fugir de um espaço de tiroteio como um facebook da vida, e me trazem aqui pro meu canto, onde eu posso racionalizar com os que têm paciência e três minutos livres pra ler um texto em parágrafos.

Existe uma meia dúzia de pessoas que conheço (umas mais, umas menos) que me inspiram. Não sou seguidor cego, fanático e alienado de nenhuma delas, mas o funcionamento de suas cabeças me fazem coçar aqui. Acho que eu preciso fazer minha parte também, no pouco que me cabe e naquilo que me deixa indignado. Que a gente pare com essa atrofia cerebral imediatista e comece a pensar naquilo que somos, no que de fato queremos passar e o que fica daqui a pouco pra quem herda, se educa ou nos vê como exemplos. Estamos num caminho muito, muito errado. E se a gente não sentir vergonha daquilo que viramos, vai ser muito difícil reagir.

E sobreviver. Porque nunca se sabe quando vão querer te arrebentar por aí.

O problema não é a Copa

Não mesmo.

A Copa virou o novo Cristo, pra deixar bem claro o quanto nos falta autocrítica nesses dias de hoje. E não, eu não vou defendê-la: acho sim que o país tem outras milhares de prioridades, e eu nunca a teria trazido pra cá enquanto todas elas não fossem sanadas; já trazida, acho absurdos os gastos desmedidos e descarados com os estádios SIM (inclusive com o do meu time, mas vou deixar o clubismo de fora desse texto), bem como o desperdício, as obras de estrutura prometidas e não cumpridas, e toda a revolta que ela gera nesse momento é PERFEITAMENTE justificável.

Mas não, o problema não é a Copa.

Só que a Copa é uma coisa que a gente – povo – “ganhou” do governo (e não da Fifa, é bom deixar claro sempre), e que nos é cobrada de forma totalmente indevida. O país do futuro quer exibir no presente aquilo que nunca foi no passado: um lugar de gente festeira (majoritariamente), com igualdade social, receptividade e educação indubitáveis. Um lugar que justifica nossa fama lá fora, lotado de mulheres seminuas, gente dançando nas ruas o tempo todo, bebendo e festejando até semáforo aberto. É isso que nossos comandantes (o Governo, e sim: a Fifa) querem que sejamos, e nos ameaçam das formas mais bizarras caso essas expectativas não sejam cumpridas.

Antes de falar disso, vamos enxergar a coisa sob outro prisma.

Safadões

A Copa é somente a afirmação macro de um modo de operação com o qual NOS ACOSTUMAMOS durante décadas, e aceitamos totalmente calados. Sim, me diga: qual a diferença entre as promessas da Copa e de qualquer campanha política? Compare a situação dos estádios com a dos hospitais, das avenidas, das obras de trânsito, educação… é exatamente a MESMA COISA: Promete-se que “serão construídas 20 coisas a preço x, com entrega y“; constrói-se 3, a preço x vezes 5, e entrega-se em y vezes 4. Assim como os aeroportos, que não serão entregues a tempo, também não foram o metrô, as escolas, as casas populares e tantas outras coisas.

E sim, meu amigo: apesar do governo não te citar em seus discursos durante o mandato vigente, você é igualmente responsável e comprometido com as obras, reformas e processos que ele assume como compromisso. Você votou naqueles caras, e os seus impostos continuam servindo pra que ele cumpra aquilo que assumiu. Igualzinho à Copa.

Então, se a Dilma e o Blatter estão te botando na roda, ameaçando prender geral quem resolver torcer o nariz pra Copa, entenda que os tais direitos democráticos (que a gente de fato tem, e estão explicadinhos no Código Civil) não funcionam somente pra um evento: funcionam pra vida. Se você acha ruim que a Copa será aqui e o governo não cumpre o que promete, desvia dinheiro, superfatura obra e faz e acontece sem licitação e o escambau, bacana – mas me prometa que daqui em diante sua postura será replicada quando você discutir o porquê de um hospital que demoraria 1 ano pra ficar pronto e que custa 2 milhões de Reais ficar pronto em 3, ao custo de 8. A revolta tem que ser a mesma, senão maior, para ser autêntica.

Caso contrário, você está bandeirando contra qualquer coisa. Uma bandeirada tão gratuita quanto discutir quem é melhor: PSDB ou PT. Se a Copa virou um pretexto pra gente assumir o conceito real de cidadania, tenha certeza: mesmo só daqui a 5 meses, a Copa de 2014 foi a melhor coisa que aconteceu a esse país nos últimos tempos.

P.S.: Em tempo – esse negócio de “vou torcer contra”, “não vou assistir” e blablablá é perfeitamente aceitável – afinal, é um estado democrático. Mas eu pessoalmente acho uma postura babaca, se tiver como função assumir nisso uma crítica velada contra o que quer que seja. Assistam “O dia em que meus pais saíram de férias“, e tentem manter acesa a chama dessa falácia – se ainda conseguirem.